quarta-feira, 29 de outubro de 2008
A CMT, a Globo e o Crioulo Doido
Drops literários
Hobsbawm e a bicicleta
TRECHO DO LIVRO DE MEMÓRIAS DO HISTORIADOR BRITÂNICO ERIC J. HOBSBAWM:
“Até mesmo a forma de transporte que nos libertou era barata, pois nós, ou nossos pais, seguimos o conselho dos anúncios na traseira dos ônibus londrinos de dois andares: "Desça desse ônibus. Ele jamais será seu. Compre uma bicicleta por dois pence por dia". Com efeito, com poucas prestações semanais podia-se comprar a bicicleta – no meu caso uma brilhante Rudge-Whitworth, que custava mais ou menos cinco ou seis libras. Se a mobilidade física é condição essencial da liberdade, a bicicleta talvez tenha sido o instrumento singular mais importante, desde Gutenberg, para atingir o que Marx chamou de plena realização das possibilidades de ser humano, e o único sem desvantagens óbvias. Como os ciclistas se deslocam à velocidade das reações humanas e não estão isolados da luz, do ar, dos sons e aromas naturais por trás de pára-brisas de vidro, na década de 30, antes da explosão do tráfego motorizado, não havia melhor maneira de explorar um país de dimensões médias com paisagens tão surpreendentemente variadas e belas. Com a bicicleta, uma tenda, um fogareiro a gás e a novidade da barra de chocolate Mars, explorei com meu primo Ronnie (que a pronunciava "Marr", como se fosse em francês) grande parte das belezas civilizadas do sul da Inglaterra, e, numa memorável excursão de inverno, também as mais selvagens do norte do País de Gales.”
(HOBSBAWM, E. “Tempos interessantes: uma vida no século XX”. ISBN 85-359-0300-3. S.Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 107-108)
A civilização vista do carro
A CIVILIZAÇÃO VISTA DO CARRO
José Maria Nunes Marques
Há dois preços para a filosofia. Um é pago e expresso em respeitáveis tratados, que os comentaristas engrossam constantemente, num filosofar sem limites. É o preço em grosso e eventualmente, compra a glória, ainda que, não raro, póstuma. No varejo a filosofia tem o mesmo preço que se dá ao “filósofo”, boa vida, desligado ou ligado, e se expressa por aí no coloquial do bate-boa ou nas colunas sagradas da imprensa, especialmente no setor das crônicas. Por muitas que sejam as distinções entre uma e outra forma, por distantes que pareçam estar, é impossível esconder os pontos de ligação entre ambas. Como estamos, acacianamente falando, colocados no contexto da vida, a nossa perspectiva existencial é tão condicionada que não se pode atribuir um valor essencial a ser filósofo em grosso, desprezando a filosofia vendida a retalho. Ninguém discute, é certo, que a vaidade repete indignada tal nivelamento, e enfeita o mundo com a relevância de fatos e coisas, criando a mística irracional, mas reconfortante, dos títulos e dos crachás, que adornam os melhores volumes da variável filosofia humana. Nos entanto nem sempre se pode estar de casaca, donde a sobrevivência das pobres crônicas filosofantes.
A tragédia não está em como ou quando se morre, mas certamente ela reside no fato de que se morre.
Muito sabiamente a vida nos distancia dessas colocações extremas, para que possamos viver, e é por meio desta camuflagem que o mundo continua girando na ficção dos dias, e nos acostumamos às distrações das horas, designando-as por uma variada nomenclatura, da qual emergem sistemas, cujos labirintos nos prendem mesmo nas missas de sétimo dia. Vivemos mal porque só estes desvios de perspectivas nos permitem viver – salvo a hipótese alternativa de Deus.
Dentre as muitas falhas do nosso sistema pessoal de percepção, os defeitos de visão têm lugar destacado. Contava-me um certo amigo um fato ilustrativo das conseqüências desastrosas de não ver ou de ver defeituosamente. Um desses dias maravilhosos de segunda-feira, quando o tráfego de veículos na cidade é um perfeito exemplo de bagunça, formou-se na avenida um engarrafamento. Num dos carros retidos o motorista reclamava e se desesperava quando o seu companheiro lhe disse que devia ter calma, que ele até gostava daquilo, que era sinal de progresso, de crescimento, de civilização. Ledo engano. Não era. Apenas o burro de uma carroça caíra no meio da rua, e enquanto o carroceiro suava para repor de pé o motor de seu veículo, crescia a estrepitosa aglomeração que permitia a nosso vesgo observador tão estranha perspectiva de civilização e cultura.
(Marques, J.M.N. “A Magia do Silêncio: Crônicas”. Organizado por Raymundo Luiz de Oliveira Lopes e Maria da Conceição de Oliveira Lopes. ISBN 85-7395-094-3. Feira de Santana, Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. pp. 181-182)
O pedestre
O PEDESTRE
José Maria Nunes Marques
De toda a estranha fauna urbana a figura do pedestre é a mais lamentável.
Realmente não há o ser pedestre, há mesmo é o estar na condição de pedestre. O automobilista estaciona a sua máquina e, de súbito, ei-lo metamorfoseado, em pedestre, atravessando a rua. O pedestre não se confunde com o homem a pé. No sertão os homens vivem muito a pé, ainda hoje, e nem por isso entram na categoria. É verdade que, mesmo na roça andar a pé não é título, porque quem tem status anda a cavalo. O homem, como ser cultural, resiste a andar por seus próprios meios, desejando sempre estar em cima de alguma coisa, que lhe facilite o ir e vir permanente.
Mas, dizíamos, o sertanejo a pé não se caracteriza como pedestre, tipo que só se entende no contexto automobilístico, sendo, portanto, um produto ou um animal específico das grandes cidades modernas, dominadas completamente pela máquina que se auto move.
O pedestre pode ser definido como um obstáculo no caminho do automóvel. Sendo um obstáculo ele cria a reação no sentido inverso, ou seja, no sentido de sua própria destruição. O automóvel, ao contrário do que imaginam os observadores superficiais, também pensa. Além de tudo aquilo que vem descrito e indicado no “livreto do proprietário”, motor, rodas, carroceria, faróis e tantas outras coisas, o automóvel incorpora ao seu conjunto, – em especial ao seu dinamismo – o homem que o dirige. Este passa a ser uma parte do carro, e a raciocinar como tal. Digamos que o carro usa o cérebro do homem do mesmo modo como o homem usa – (por enquanto) – os computadores. E assim que o automóvel pode tomar consciência do pedestre como alguém que ocupa um lugar no espaço sendo pois um concorrente, um adversário. Há uma questão de “espaço vital” no relacionamento automóvel X pedestre, porque o primeiro tem um insaciável apetite por espaços livres, onde possa expandir a sua personalidade. A psicologia do automóvel é exibicionista. Ela não pode suportar a presença lerda e incômoda do pedestre, inapropriadamente equipado para o locomoção, mas que teima em andar, atravessando ruas e passeios, que por natureza são destinados aos carros (vide os passeios de Salvador e mesmo os de Feira de Santana).
Daí parte o automóvel para a caça ao pedestre.
Podemos definir o pedestre, já agora, como o animal de caça do automóvel.
Não há quem não tenha assistido em filmes àquelas pomposas caçadas à raposa, com centenas de cães, os caçadores a cavalo, vestidos a caráter, vermelho, preto, cinza, com lacaios tocando cornetas e – no enredo- uma dama que cai cujo cavalo dispara. Um passatempo elegante para os caçadores, mas um vexame mortal para a raposa.
A visão dessas caçadas me ocorre freqüentemente nas grandes avenidas, quando os carros, no sinal verde do lacaio mecânico, disparam sobre os pedestres, que fogem como raposas assustadas. Nem todos, porém, conseguem escapar. Não encontram a tempo uma toca, como as raposas, mais espertas. Entram então para as estatísticas, juntamente com os cérebros dos automóveis, e vão servir aos debates dos técnicos e à meditação dos homens, nos raros momentos em que não estão como pedestres nem como componentes do psiquismo do automóvel.
É por toda essa loucura que, às vezes, olhando orgulhosamente a nossa obra, vislumbramos, por entre os fumos poluidores da civilização de consumo, a figura tosca e pré-histórica de um “brucutu” armado de porrete, a golpear a própria cabeça.
Feira de Santana, 1973.
(Marques, J.M.N. “A Magia do Silêncio: Crônicas”. Organizado por Raymundo Luiz de Oliveira Lopes e Maria da Conceição de Oliveira Lopes. ISBN 85-7395-094-3. Feira de Santana, Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. pp. 93-94)