segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O transporte, o trabalho e a justiça


(O artigo abaixo foi enviado na última quinta-feira, dia 19/12, para a editoria de opinião do jornal Correio Braziliense, que não o publicou e nunca me respondeu se ia publicar. Hoje pela manhã o GDF interveio nas empresas do empresário Wagner Canhêdo. Uma medida importante, recuperando para o Estado o papel de poder concedente de um serviço público. Obviamente meu artigo perdeu a atualidade factual. Ainda assim, compartilho minhas reflexões, que podem ser aplicáveis em outros contextos.)


O transporte, o trabalho e a justiça


O GDF está chegando perto de concluir a primeira etapa de um processo difícil que, provavelmente por isso mesmo, foi destacado como um dos principais projetos políticos desta administração. Trata-se da licitação do serviço de transporte público coletivo por ônibus, depois de décadas em que a população foi submetida à sanha dos empresários do setor assistidos placidamente por sucessivos governos. O processo em si tem suas fragilidades, tanto no campo operacional como nas bases conceituais, mas não é sobre elas que pretendo fazer comentários aqui. Quero usar este espaço para compartilhar uma reflexão sobre os desafios da transição que estamos vivendo.

Creio que muito poucos serão os brasilienses que não têm uma péssima impressão dos proprietários de empresas de ônibus locais. É verdade que isso não se restringe a Brasília, assim como é justo ressalvar que há, aqui e em outras cidades, figuras que exercem seu papel social e econômico de forma idônea, pelo menos segundo os marcos da ética capitalista que a sociedade brasileira adota. Mas há representantes da classe de empresários de ônibus, responsáveis exponenciais pela má imagem, que não perdem oportunidade de confirmar a impressão que o senso comum lhes confere. É o que faz neste momento o senhor Canhêdo. Excluído do sistema pelo processo licitatório, depois de inúmeras investidas no campo judicial, pratica agora toda sorte de boicote aos direitos trabalhistas dos rodoviários como forma de impedir que empresas ganhadoras operem plenamente suas linhas.

A solução achada pelo GDF foi assumir neste ponto as despesas com o passivo trabalhista. Pareceu-me uma solução adequada, até porque já tive oportunidade de negociar saída semelhante quando pertencia à Administração Superior da Universidade de Brasília. Em mais de uma ocasião, ante o calote perpetrado por empresas prestadoras de serviços terceirizados contra seus empregados, a UnB buscou a chancela do Ministério Público do Trabalho e, com ela, pagou aos trabalhadores para depois cobrar a conta das empresas por outros meios. Por isso fiquei surpreso quando li na imprensa que uma respeitada entidade, com histórico reconhecido de defesa do interesse público, ajuizou ação contra a medida proposta pelo GDF. Ainda mais surpreso fiquei com a decisão do Judiciário, proibindo o GDF de agir como planejara.

Certo, não me detive a analisar documentos e, mesmo que o tivesse feito, possivelmente esbarraria em algum dispositivo incompreensível por engenheiros. Assim, assumo a possibilidade de haver vícios de forma na atitude do GDF. De todo modo, assusta-me a perspectiva de que dois direitos sagrados – o da população a um serviço público digno e o dos trabalhadores à justa remuneração devida – sejam tratados num nível de disputa em parece prevalecer a lógica econômica dos direitos comerciais.

Senhores, quem trabalha precisa ser pago conforme contratado, inclusive no momento da dispensa. Por outro lado, a cidade e a população que nela vive precisam de um sistema de transporte público (destaque para o “público”) funcionando. Quem trabalha nesse sistema precisa, sim, ser assistido pelo poder concedente, que tem responsabilidade solidária na contratação da força de trabalho. Todo o resto deve ser decidido à luz da lei, das melhores práticas e da moralidade. Mas pode esperar. O que não é possível é que, enquanto não se chega a um entendimento satisfatório dentro desses princípios, prevaleça exatamente o que querem aqueles em quem o senso comum colou a imagem de bandidos.

Perdoem-me, por favor, o simplismo do raciocínio, mas é assim que vejo o mundo. E acredito não estar sozinho...

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Série sobre motos no Correio Braziliense

A jornalista Adriana Bernardes publicou uma interessante série sobre motocicletas no trânsito do Distrito Federal entre os últimos dias 27 e 30 de outubro. Clique nas miniaturas abaixo para baixar as reproduções das páginas do jornal com as matérias.





terça-feira, 29 de outubro de 2013

Ambiente hostil

(Artigo publicado originalmente em matéria da edição de hoje, 29/10/2013, do Correio Braziliense)

Por Paulo Cesar Marques da Silva

No Brasil, além da falta de conhecimento sobre as causas de acidentes, também de motos, existem problemas que agravam a situação. É preciso investir na melhoria da formação dos motociclistas; mudar a cultura do ambiente de circulação, pensado para quem tem quatro rodas; aumentar a fiscalização; investir em campanhas educativas; e repensar a relação de trabalho dos motoboys.

A pesquisa sobre o motociclista brasiliense mostra um comportamento de risco na vias. Em parte, isso é resultado da má-formação. É preciso corrigir o processo de habilitação de quem pilota motos, mas também precisamos repensar as relações de trabalho. Em boa parte das vezes, esses profissionais não têm carteira assinada e ganham por entrega feita. Portanto, quando eu e você pedimos uma pizza, contratamos uma viagem de risco para o entregador, que é pressionado a percorrer o trajeto no menor tempo possível.

Tem outro ponto importante, que precisamos mudar: a cultura de que as ruas são para os carros. Os motoristas, em geral, têm um comportamento hostil em relação ao motociclista. E este, por sua vez, reage também de forma agressiva, seja estourando o retrovisor, seja chutando a porta. Isso se muda com campanhas educativas de massa para conscientizar a todos de que as vias devem ser compartilhadas por todos os tipos de veículos e pelos pedestres.

Paulo César Marques da Silva, professor da Universidade de Brasília graduado em engenharia mecânica, mestre em engenharia de transportes e doutor em estudos em transportes.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

A hora e a vez da tarifa zero

(Artigo publicado originalmente na edição de hoje do Correio Braziliense)


PAULO CESAR MARQUES DA SILVA
Professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), doutor em estudos de transportes pela University College London (Inglaterra)

A tarifa zero no transporte coletivo urbano entrou definitivamente na agenda política nacional a partir das manifestações do Movimento Passe Livre. No Distrito Federal, o movimento levou o governo local a se comprometer com a formação de grupo de trabalho específico para estudar a viabilidade da proposta. Sem dúvida, um passo importante. Não tardaram a surgir, porém, na imprensa e na boca de gestores e lideranças políticas e empresariais, os primeiros argumentos contrários. Entre eles destaca-se o alto custo do sistema. Cabe aí a pergunta: alto custo para quem?

Estudiosos têm-se debruçado bastante ao longo dos anos sobre o grande impacto do transporte no orçamento doméstico de moradores de nossas cidades. No outro lado da equação, gestores apressam-se em demonstrar os impactos nos cofres públicos caso os municípios deixem de cobrar dos passageiros os custos das viagens. O Governo do Distrito Federal, por exemplo, estimou em R$ 130 milhões o custo operacional mensal do sistema de transporte por ônibus, uma cifra que impressiona. Como também impressionou o valor de R$ 8 bilhões até 2016 que o prefeito de São Paulo afirmou ser preciso deslocar de outras prioridades para permitir a revogação do aumento de 20 centavos na tarifa local.

Como são apresentados, os cálculos levantam suspeitas de carregarem problemas de método. Com efeito, é de esperar que a tarifa zero resulte em aumento da demanda, assim como também é razoável que se desejem melhorias no transporte público, não apenas que ele seja de uso gratuito no futuro, mas com a (falta de) qualidade dos dias atuais. Se, por um lado, isso significaria que os custos estão subestimados, por outro, o mesmo poderia ser dito dos benefícios a serem proporcionados pela medida. Afinal, quanto seria possível deixar de gastar com a expansão do sistema viário, por exemplo?

Em suma, muita conta ainda precisa ser feita até que se chegue a uma quantificação convincente dos custos. Só não há dúvida de que eles são altos. Mas, então, quem deve pagar por eles? Para responder a essa pergunta, sugiro primeiro identificar quem realmente precisa dos serviços de transporte. Da forma como se constituíram ao longo dos dois últimos séculos, as cidades adquiriram dimensões tais que, no dia a dia, as pessoas precisam se deslocar grandes distâncias e gastar muito tempo nesses deslocamentos. 

As pessoas das camadas menos favorecidas moram longe dos locais de trabalho, de serviços e de lazer, não por opção, mas porque sua renda não lhes permite morar perto, e essa mesma restrição de renda as impede de ter automóvel, ou pelo menos de usá-lo na vida cotidiana. Isso não significa, porém, que as cidades possam prescindir do deslocamento diário dessas pessoas, seja para vender sua força de trabalho, seja para consumir produtos e serviços que mantêm girando a roda da economia.

Ou seja, há algo muito errado no argumento que reduz a mobilidade urbana unicamente à dimensão de direito dos cidadãos. Antes disso, a mobilidade é uma necessidade das cidades. Melhor dizendo, o direito à mobilidade deve, sim, ser assegurado a todos, mas não há por que transferir às pessoas a responsabilidade por comprá-lo.


A solução da contradição passa necessariamente pela revisão dos conceitos. Em primeiro lugar, adotemos o entendimento de que, em vez de enxergá-lo apenas como um meio de assegurar à população de uma cidade o direito à mobilidade, o sistema de transporte público necessita ser tratado como necessidade vital da própria cidade.

Em segundo lugar, e em decorrência desse entendimento, construamos outro modelo de financiamento do sistema, sem onerar os passageiros com os custos de um serviço de cuja existência quem depende não são eles, mas a cidade que criou distâncias impraticáveis. Exatamente porque o custo do sistema é alto, não cabe cobrá-lo da parcela mais pobre da população. Em vez de estudar se a tarifa zero é viável, o Governo do Distrito Federal deveria estudar como viabilizá-la.

Por fim, precisamos refutar imediatamente, antes mesmo que alguém sugira, qualquer restrição da tarifa zero às viagens vinculadas estritamente a atividades como trabalho e estudo. A vida em sociedade não se resume à reprodução e venda da força de trabalho. O pleno exercício da cidadania implica a remoção de todo tipo de barreira ao pleno desfruto da vida independente. A tarifa cobrada do usuário de transporte público é uma dessas barreiras.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Sagrado e profano

Um excelente artigo do Prof. Frederico Holanda, originalmente publicado no Correio Braziliense de hoje:

Sagrado e profano

» FREDERICO DE HOLANDA
Professor titular da Universidade de Brasília (UnB)






Duas visões de cidade frequentemente entram em choque quando se discutem questões urbanísticas em Brasília. Não é diferente com as ciclovias na Esplanada dos Ministérios e as árvores que a sombrearão. Os defensores arguem a melhoria da mobilidade urbana. Os detratores dizem que danificarão a paisagem.

Voltemos um pouquinho no tempo. A Esplanada dos Ministérios tem 300m de largura de empena a empena dos blocos ministeriais. O gramado central entre as 12 faixas de rolamento para veículos motorizados tem 200m de largura. Alguns não sabem que essas não eram as dimensões originais do espaço pensado por Lucio Costa. A distância entre empenas laterais dos ministérios era de 240m (60m a menos) e o gramado central tinha 160m de largura (40m a menos). Portanto, mesmo que as faixas arborizadas sombreando as ciclovias tomem 20 metros de cada lado (e pela observação do canteiro de obras não chegará a isso), apenas resultará a dimensão do gramado central como inicialmente pensado.

Então, qual o problema? Lucio Costa concebeu Brasília como civitas e como urbs — a cidade tem um duplo caráter. Por um lado, é a cidade do poder, dos símbolos, das representações, das cerimônias; por outro, a cidade secular da vida cotidiana dos habitantes. E ele não concebeu a Esplanada como uma “pura” civitas. Alguns também não sabem que há no projeto uma clara indicação de um edifício baixo, conectando os blocos ministeriais entre si, que abrigaria serviços diversos. Nunca foi feito. Noutras palavras, o arquiteto também trazia serviços da vida cotidiana para o coração da civitas.

O problema é outro. É a reação contra qualquer uso menos “simbólico” ou “nobre” para o espaço. Reage-se contra tudo que intensifique o uso cotidiano do lugar, de quaisquer maneiras. Estão sendo mais realistas do que o rei. Esquecem que Lucio Costa tinha por referência afetiva as cidades europeias, continentais ou inglesas. E que, nelas, sagrado e secular, uso cotidiano e excepcional misturam-se para definir alguns dos espaços urbanos mais fortes da história.

Pensem nos monumentais 8km de comprimento e nos “meros” 70m de largura dos Champs Élysés, em Paris. Ou pensem na Praça de São Marcos, em Veneza. Não poderiam ser espaços mais simbólicos e simultaneamente mais prenhes de intensa e animada vida cotidiana. Na América, pensem no Mall de Washington, mais próximo da configuração da Esplanada, cujo gramado central tem 80m de largura; somam-se duas alamedas laterais arborizadas, totalizando 240m de largura entre edifícios — a medida original da Esplanada. No mínimo, é bom considerar esses fatos.

Decerto o projeto das ciclovias podia ser melhor. Por exemplo, por que não implantá-las mordendo uma faixa de rolamento para veículos, em cada direção? Restariam cinco para veículos. Dessas, que tal morder mais uma e implantar os bondes modernos em faixas exclusivas (VLTs) que, por exemplo, valorizam a paisagem de Barcelona, em vez de danificá-la? Seria revertida uma política perversa que desde as origens de nossa querida capital concede todo o privilégio ao carro.

As ciclovias, mesmo não sendo o projeto dos sonhos de alguns de nós, são um avanço. Sinalizam, pelo menos, uma tímida mudança de foco. Valorizar as ciclovias, colocando-as no espaço mais “nobre” da cidade tem uma conotação simbólica a mais: indicam a importância conferida a uma nova forma de mobilidade na qual se investe fortemente mundo afora.

Finalmente, um lugar é tão mais valorizado por seus habitantes quanto mais intensamente ele incorpora-se à vida cotidiana ou aos eventos excepcionais da cidade. Cresce a importância simbólica, além da importância prática. As bicicletas e as árvores que proporcionarão conforto aos pedalantes são uma contribuição. Hoje, a Esplanada é quase exclusivamente o espaço cerimonial da acrópole, não o espaço urbano da ágora. Sim, por seus atributos, será sempre um espaço predominantemente simbólico. Mas as ciclovias e os prédios pensados por Lucio Costa para as laterais do lugar são “temperos urbanos” que só o engrandecerão.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Desafio à morte em 2 rodas

(Matéria originalmente publicada na edição de hoje do Correio Braziliense)

TRÂNSITO »

Desafio à morte em 2 rodas
Motociclistas não respeitam a sinalização, os limites de velocidade nem se intimidam diante dos graves acidentes. Essas são algumas das conclusões da pesquisa feita com 672 profissionais que trabalham na cidade

ADRIANA BERNARDES
Publicação: 10/06/2013 04:00

Werner já sofreu dois acidentes no corredor:
Werner já sofreu dois acidentes no corredor: "Não tem quem não faça"


O semáforo fecha. Um a um, os carros param e formam longas filas. Em questão de segundos, os motociclistas surgem. Usam o espaço estreito entre um veículo e outro. Para ganhar alguns centímetros de asfalto, amontoam-se debaixo do semáforo. A luz mal fica verde e eles arrancam. Hábitos que caracterizam comportamento de risco no trânsito. No Distrito Federal, condutas assim foram constatadas em uma pesquisa com 672 motociclistas. 

De uma lista de 43 comportamentos arriscados, o excesso de velocidade, o corredor e a costura entre os veículos foram admitidos com maior frequência entre os entrevistados. Além disso, ficou provado que quem usa a moto como instrumento de trabalho se arrisca mais. Quanto menor é a renda, mais o motociclista conduz a moto de forma perigosa. O estudo, de autoria de Paulo Victor Hermetério Pinto, resultou em uma dissertação de mestrado em transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília. A tese acaba de ser defendida e prova, cientificamente, a imprudência vista nas ruas. 

O que mais surpreendeu o autor do estudo foi o alto índice de recorrência de comportamentos de risco entre os motofretistas. Segundo o pesquisador, a literatura mostra uma tendência desse grupo de se expor mais ao perigo, e, no DF, não é diferente. “Isso se deve às características da profissão, como a relação direta entre a remuneração e a quantidade de entregas realizadas”, explica. 

Para avaliar a conduta dos motociclistas nas vias, os entrevistados responderam a 43 perguntas sobre a rotina no trânsito. Todas as questões são consideradas arriscadas. As condutas mais relatadas estão ligadas ao desrespeito aos limites de velocidade. E, em alguns casos, como a pergunta sobre o hábito de dirigir alcoolizado, o resultado foi pequeno. Mas, em relação a esse item, Paulo Victor considera haver distorções e supõe: “A pessoa se sente constrangida em admitir”. 

Nas ruas, é fácil comprovar as constatações do estudo. Em apenas 30 minutos, a reportagem presenciou quatro motociclistas avançarem o sinal vermelho do cruzamento da W3 Sul, na altura do Pátio Brasil. Antes de cometer a infração, eles “costuraram” entre os carros parados e trafegaram pelo corredor. 

Rotina
Motociclista profissional há cinco anos, Werner Alves, 25, narra, sem meias palavras, a rotina em cima de duas rodas. “A gente passa em cima da calçada, sobe no meio fio, passa entre os blocos, anda acima da velocidade, não tem jeito. Tem que correr contra o tempo”, assume. Na briga contra o relógio, atropelando as normas seguras de circulação Werner já sofreu dois acidentes, os dois quando fazia “corredor”. Por sorte, saiu sem ferimentos graves. “Não tem ninguém (motociclista) que não faça. Até quem usa a moto só para ir trabalhar”, diz. No último ano, Werner enterrou dois colegas de profissão. “Na hora, dá vontade de parar. Mas, depois, você acaba esquecendo. A profissão é muito perigosa, mas é melhor do que ficar atrás de um balcão. Nas ruas, você está livre, e o salário não é tão ruim”, justifica. 

Na pesquisa, Paulo Victor destaca que os motociclistas têm 34 vezes mais chances de se envolver em acidente do que outro tipo de condutor e, oito vezes mais chance de ter ferimentos graves. Chama a atenção o fato de os estudos americanos revelarem que, em 80% dos casos, os acidentes têm relação direta com o fator humano e não com as condições da via ou adversidade do clima, por exemplo. 

Presidente da Federação Nacional dos Motociclistas Profissionais e do Sindicato dos Motociclistas de Brasília, Reivaldo Alves concorda com o resultado do estudo. Ele diz que a precariedade das relações de trabalho tem relação direta com a imprudência. “Muitos trabalham na informalidade para várias empresas ao mesmo tempo, e são remunerados por serviço feito. Assim, quanto mais entregas fazem, mais ganham. E, aí, acontece todo tipo de coisa”, diz. 

Segundo o sindicalista, cerca de 30 mil pessoas no Distrito Federal atuam como motociclistas profissionais. Desse total, no máximo 2 mil têm carteira assinada. Nesses casos, o piso é de R$ 800. Mas o trabalhador ganha mais R$ 301 pelo aluguel da moto e R$ 12 de vale alimentação por dia, além do seguro de vida. “Somando tudo, dá uns R$ 1,4 mil. Quem não tem carteira assinada, recebe até mais do que isso. No entanto, não tem garantia nenhuma”, pondera. Para Reivaldo, as imprudências serão combatidas com um trabalho sério de educação e de combate à informalidade.
Professor Paulo Victor: quanto menor a renda, mais o motociclista dirige de forma perigosa
Professor Paulo Victor: quanto menor a renda, mais o motociclista dirige de forma perigosa

Motoqueiro   passa ao lado de um acidente com outro profissional. Segundo o estudo , o comportamento de risco é mais comum entre os que usam a 
moto para trabalhar
Motoqueiro passa ao lado de um acidente com outro profissional. Segundo o estudo , o comportamento de risco é mais comum entre os que usam a moto para trabalhar


Hábitos perigosos são recorrentes
No Distrito Federal, os acidentes fatais envolvendo motos representam um terço de todos os casos em que há morte, e os registros estão aumentando em relação às ocorrências com outros tipos de veículos. De 2011 para 2012, houve uma queda de 13% no número de acidentes sem moto, mas foi registrado crescimento de 28% nas ocorrências com moto. Foram 122 mortes, sendo que, 103 vítimas ocupavam a moto. O autor do estudo sobre o comportamento de risco dos motociclista, Paulo Victor Hermetério Pinto diz não ser possível determinar quais são os hábitos mais perigosos. Para isso, seria necessário estudar as condutas envolvidas em acidentes fatais e eleger as mais letais, o que não é objeto do estudo dele. 

O professor Paulo César Marques, orientador da pesquisa, diz que o mais surpreendente do estudo é a confirmação de que o comportamento de risco é mais recorrente entre os que utilizam a moto como instrumento de trabalho. “As relações de trabalho expõem o motofretista a condições inseguras de circulação, e isso é parte do próprio trabalho deles”, diz. Segundo ele, em outras palavras, quando o serviço dos motoboys é contratado, pela empresa ou pelo cliente que quer a pizza quentinha, está embutida a necessidade de exposição a riscos demasiados para que os prazos sejam cumpridos. 

Para Paulo Victor, as constatações da pesquisa podem servir para subsidiar a elaboração e o aprimoramento de políticas públicas. “A partir dos resultados, é possível criar campanhas de prevenção de acidentes relacionados aos hábitos recorrentes e criar diretrizes para a elaboração de cursos de capacitação dos usuários. Também é uma ferramenta útil para orientar a fiscalização de forma mais eficiente”, acredita. 

Paulo César Marques acrescenta que, além das campanhas educativas, é preciso rever a regulamentação dos serviços de motofrete. Ele destaca que, quando a profissão foi regulamentada, o foco ficou apenas na qualificação do motociclista. “Mas as relações de trabalho em si não foram objeto de normatização. Não há responsabilização de quem contrata o motofretista para fazer uma viagem dentro de um intervalo de tempo que, para ser cumprido, necessariamente levará o motociclista a cometer infrações”, detalha. 

Na avaliação de Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), só haverá redução das mortes e lesões entre os motociclistas quando o governo conseguir conscientizá-los sobre os riscos e mudar a cabeça dos usuários. “Também é preciso fiscalizar e punir severamente os infratores, com multas semelhantes às da lei seca (R$ 1,9 mil)”, defende.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Eixão do Lazer foi suspenso pra quê mesmo?

O Governo do Distrito Federal disse que tudo que fez para o jogo entre Santos e Flamengo era parte de um teste. Então acompanhou tudo muito bem ao longo deste domingo hoje em Brasília, certo? 

Pois bem, estou ansioso para ver os resultados e a avaliação do monitoramento. E curioso também para ver qual foi o método de coleta dos dados. Sim, porque há uns dois meses, se a memória não me falha, testemunhei a presença de diversas pessoas realizando contagens de veículos no Eixão, um método convencional de levantamentos de campo. Neste domingo circulei por um trecho razoável da Asa Norte e não vi ninguém trabalhando nisso. Como havia helicópteros sobrevoando a área, assumo que as observações eram feitas deles.

Por força do hábito, registrei algumas imagens de manhã, em paradas que fiz durante a pedalada que fui obrigado a fazer fora do Eixão. Fiz pequenos registros dos seis movimentos assinalados na foto abaixo, no início da Asa Norte.


Do Eixão propriamente dito, aqui vai o registro dos movimentos 1 (à esquerda) e 2 (à direita):


Do Eixo W, eis o registro dos movimentos 3 (esquerda) e 4 (direita):


Por fim, o registro dos movimentos 5 (esquerda) e 6 (direita) no Eixo L:


Os três filminhos foram feitos entre 11 e 11h30. Claro que isso não é suficiente para justificar a abertura ou o fechamento do Eixão aos carros. Isso nós vamos poder discutir com os dados que o GDF obviamente divulgará, para deixar tudo transparente.

Enquanto não vemos o aguardado resultado do teste do GDF, permaneço com a firme convicção de que todo mundo que passava de carro no Eixão cabia nos Eixinhos, pelo menos na parte da manhã. Continuo achando que o motivo para tirarem o lazer do Eixão é outro!

sábado, 25 de maio de 2013

Domingo sem Eixão do Lazer? Como assim?

(Publicado originalmente no Correio Braziliense)

Domingo sem Eixão do Lazer? Como assim?

» PAULO CESAR MARQUES DA SILVA

Professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), é doutor em Transportes pela University College London (Inglaterra)


Veículos da imprensa do Distrito Federal vêm noticiando que amanhã, por causa do jogo Santos x Flamengo, pela rodada de abertura da Série A do Campeonato Brasileiro de 2013, o Eixo Rodoviário não será fechado ao tráfego motorizado. Ou seja, ao longo de todo este domingo, o brasiliense não terá seu Eixão do Lazer, alegadamente para permitir que os torcedores cheguem e saiam com facilidade da área em que fica o Estádio Nacional Mané Garrincha, onde a partida ocorrerá a partir das 16h. Vários aspectos merecem ser comentados acerca desse disparate, mas vou limitar-me a apenas alguns deles aqui neste espaço.

A primeira coisa que chama a atenção é a flagrante contradição entre a medida em si e o esquema preconizado pela Fifa para os dias de jogos das copas que ela organiza. Conforme o que se lê na imprensa, isso é que estará sendo testado e a intenção do GDF é repetir a dose a cada jogo que ocorrer no Mané Garrincha em domingos ou feriados. Acontece que o esquema da Fifa é exatamente o oposto: para ela, o tráfego motorizado deve ser impedido nos arredores da arena, o que pressupõe reforçar o transporte coletivo, não facilitar a chegada de carros.

Há também uma contradição de natureza, digamos, conceitual. A realização do jogo entre Santos e Flamengo em Brasília pareceu ser uma ótima oportunidade de permitir que torcedores brasilienses de dois dos mais tradicionais clubes de futebol do país protagonizassem o espetáculo que estão acostumados a ver pela tevê nas arquibancadas de outros estádios. Os preços proibitivos dos ingressos, no entanto, projetam suspeitas de que boa parte das torcidas autênticas acabe excluída da festa. A se confirmarem tais suspeitas e a suspensão do Eixão do Lazer, assistiremos a uma dupla exclusão — do povo que não pode pagar para ir à arena nem pode desfrutar num dia de festa do principal lazer gratuito que a cidade oferece.

Por último, mesmo se admitisse que o mundo é assim mesmo e que todos os habitantes do DF querem sinceramente facilitar a vida de quem vai de carro ver o jogo na arena, eu permaneceria com imensas dúvidas sobre a efetividade da medida. Afinal, quantos serão esses torcedores que precisam percorrer a Asa Sul ou a Asa Norte para chegar ao Mané Garrincha antes das 16h e sair após as 18h? Quantos serão os carros demandando a suspensão do Eixão do Lazer, desde seu início, às 6h da manhã?

Mesmo sem entrar em outras considerações, acho que tenho motivos de sobra para crer que estamos diante de uma cortina de fumaça. Vejo indícios de que há outras motivações, talvez as mesmas que levaram um antigo secretário de Transportes local a anunciar o fim do Eixão do Lazer alguns anos atrás. Segundo ele, a atividade atraía só um pequeno número de pessoas, enquanto muita gente era prejudicada por não poder cruzar a cidade a 80km/h nos domingos e feriados.

A propósito, a ideia insana do ex-secretário acabou inspirando a Lei Distrital nº 4.757, de fevereiro de 2012, que estabeleceu o Eixão de Lazer nos termos em que ele existe hoje e obriga o Poder Executivo a adotar “as medidas necessárias para disponibilizar à população, com segurança, o espaço físico de trata esta lei”. Ora, se não há nova lei revogando a do ano passado, como pode o Executivo suspender o Eixão do Lazer?

Mas, voltando à cortina de fumaça, parece-me mesmo que essa vontade difusa de submeter tudo e todos à ditadura do automóvel pode até permanecer latente durante um ou outro período. Seus defensores podem parecer tímidos ou ficar envergonhados por um tempo. Porém, na primeira oportunidade, a obsessão reaparece com toda força. Mesmo que precise inventar os argumentos mais ridículos e absurdos para tentar convencer os incautos.

terça-feira, 19 de março de 2013

Os dados pouco confiáveis do trânsito brasileiro

Não há qualquer novidade na constatação de que não dispomos de bases de dados consistentes e confiáveis, capazes de bem subsidiar a análise e embasar a proposição de medidas que ataquem a catástrofe que é a segurança no trânsito brasileiro. O que me surpreendeu mesmo foi a conta feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em relatório recém publicado.

O erro chamou minha atenção quando os números me foram apresentados pela jornalista Julia Chaib, ao me entrevistar por telefone ontem para a matéria publicada hoje no Correio Braziliense. Nela aparece a taxa de 22,5 mortos para cada 100 mil habitantes em 2010. Mas também aparece o quadro com o número de 36.499 mortos para uma população de 194.946.488, o que resultaria numa taxa de 18,7/100 mil habitantes.

Tal diferença significa muito pouco em termos do ranking que é mostrado na mesma matéria: sairíamos da 148a. para algo em torno da 100a. posição, ainda atrás de muitos de nossos vizinhos sulamericanos, por exemplo. Entretanto, a correção corroboraria a análise que temos feito com base nas estimativas mais divulgadas.

Com efeito, a Política Nacional de Trânsito (PNT) formulada em 2004 estimou uma taxa de 18 mortos/100 mil habitantes naquele ano e estabeleceu em suas metas a redução para 17 em dezembro de 2006, 14 em dezembro de 2010 e 11 em dezembro do ano que vem. No meio do caminho o Brasil se comprometeu com a meta da Organização das Nações Unidas (ONU), de reduzir as mortes à metade até o final da década iniciada em 2011. Mas estamos estagnados em 18 há uma década.

É verdade que 22 e 18 são números muito ruins, porque muito altos. É verdade também que, no ritmo em que estamos, vamos passar a vergonha de fechar a Década de Ações da ONU como se não fôssemos signatários do pacto mundial pela redução das vítimas. Mas conhecer bem a realidade é sempre um bom ponto de partida para transformá-la.

E, por falar em conhecer a realidade, que tal se nossas autoridades gastassem meia hora para (re)ler a PNT, que na prática foi abandonada na maternidade? Creio que temos ali um bom roteiro de ações...

segunda-feira, 4 de março de 2013

A tarifa do transporte público como fator de exclusão social


Abaixo, apontamentos para a fala que fiz hoje no 12º. Café Científico de Brasília, promoção da Embaixada da França e do IRD (Institut de recherche pour le développement), moderado pelo jornalista Daniel Rittner, do Valor Econômico, e que também teve a participação de Alexandre de Ávila Gomide e Nicolas Bautes.

A tarifa do transporte público como fator de exclusão social

Em artigo publicado no final do século XX, o pesquisador francês Gabriel Dupuy definiu assim a mudança paradigmática do “círculo mágico” para a “dependência do automóvel”:

O aumento no tráfego de automóveis levou à expansão da rede viária, assim encorajando os proprietários de carros a dirigir mais, mais pessoas a adquirir carros, mais uma vez um aumento no tráfego foi seguido da expansão da rede, e assim por diante.”¹

Da forma como se constituíram ao longo dos dois últimos séculos, as cidades incorporaram distâncias tais que, no dia a dia, as pessoas precisam se deslocar grandes distâncias e gastar muito tempo nesses deslocamentos. Às parcelas da população cuja condição socioeconômica permite é possível escolher onde morar – se nas áreas mais centrais, onde o valor da terra é geralmente mais alto mas os custos dos deslocamentos são mais baixos, ou nos arredores bucólicos das cidades, com terrenos mais baratos (embora os custos de construção sejam mais altos), aonde só o automóvel permite chegar com algum conforto.

A realidade das camadas menos favorecidas da população é bem outra. As pessoas moram longe dos locais de trabalho, de serviços e de lazer porque sua renda não lhes permite morar perto, e essa mesma restrição de renda lhes impede de ter automóvel, ou pelo menos de usá-lo na vida cotidiana. Isso não significa, porém, que as cidades possam prescindir do deslocamento diário dessas pessoas, seja para vender sua força de trabalho, seja para consumir produtos e serviços que mantêm girando a roda da economia.

Ou seja, há algo muito errado no argumento que reduz a mobilidade urbana unicamente à dimensão de um direito dos cidadãos. Antes disso, a mobilidade é uma necessidade das cidades. Melhor dizendo, o direito à mobilidade deve, sim, ser assegurado a todos, mas não há por que transferir às pessoas a responsabilidade por comprá-lo.

Acontece que o sentido de público há muito desapareceu da cartilha por onde reza a grande maioria dos gestores de sistemas de transporte urbano. Para eles, os serviços de transporte devem ser prestados e consumidos unicamente segundo as leis do mercado. O único papel do Estado é o da regulação econômica, assegurando condições adequadas de concorrência entre os prestadores do serviço.

Esses operadores, por sua vez, não deixam de exercer o papel que mais agrada aos capitalistas brasileiros – o de reivindicar a proteção do Estado contra os riscos que ameacem seu negócio. Nas palavras de Otávio Cunha, representante do empresariado do setor:

Os aumentos das tarifas do transporte coletivo urbano são simplesmente o resultado do círculo vicioso que ocorre porque o transporte público torna-se cada vez menos competitivo em relação ao transporte privado e atrai cada vez menos passageiros pagantes, que dividem custos crescentes.”²

Em um aspecto os empresários têm razão. O Estado ameaça o mercado quando tira dele o consumidor de maior renda. No mesmo artigo, mais adiante, Otávio Cunha põe o dedo na ferida:

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que os subsídios diretos ao transporte individual são 11 vezes maiores do que os concedidos ao transporte público urbano. Nessa mesma linha de incentivo ao transporte individual, pode-se incluir a redução/eliminação do Imposto sobre Produção Industrial (IPI) incidente sobre os veículos automotores populares.”

Há, portanto, uma contradição entre as diretrizes de mobilidade sustentável instituídas pela lei n. 12.587/2013 e as medidas econômicas desenhadas pelo governo federal. Estas últimas acabam por alimentar o círculo vicioso a que se referia Gabriel Dupuy há quase quinze anos.

A meu ver, a solução dessa contradição passa necessariamente pela revisão dos conceitos. Em primeiro lugar, sugiro que seja adotado o entendimento que propus no início deste texto. Em vez de o enxergar apenas como um meio de assegurar à população de uma cidade o direito à mobilidade, é preciso tratar o sistema de transporte público como uma necessidade vital da própria cidade.

Em segundo lugar, e em decorrência desse entendimento, é necessário construir um outo modelo de financiamento dos serviços. Não faz o menor sentido onerar os passageiros com os custos de um serviço de cuja existência quem depende não são eles, mas a cidade que criou distâncias impraticáveis.

Por fim, precisamos refutar imediatamente, antes mesmo que alguém sugira, qualquer restrição à realização das viagens em transporte público que as vincule estritamente a atividades como trabalho e estudo. A vida em sociedade não se resume à reprodução e venda da força de trabalho. O pleno exercício da cidadania implica a remoção de todo tipo de barreira ao desfruto da vida independente.


(1) Dupuy, G. (1999). From the 'magic circle' to 'automobile dependence': measurements and political implications. Transport Policy, 6, p. 1-17.

(2) Cunha, O. (2013). A verdade sobre o aumento das tarifas de ônibus. Correio Braziliense, 27/02/2013, p. 25


terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Antes tarde que nunca

(Artigo publicado originalmente na edição de hoje do Correio Braziliense, a respeito da intervenção do Governo do Distrito Federal em três empresas de transporte coletivo urbano do Grupo Amaral)


por Paulo Cesar Marques da Silva*

A assunção pelo GDF de empresas prestadoras do serviço de transporte público coletivo foi, sem dúvida, uma grande surpresa para a maioria da população do Distrito Federal e, arrisco supor, de todo o Brasil. Afinal, desde o fim da década de 1980 e mais acentuadamente a partir do início do governo Collor, em 1990, a onda de políticas neoliberais afastou o Estado brasileiro, em suas três esferas, do controle de vários serviços públicos, entre os quais destacam-se os de transporte urbano. O Brasil importava, assim, os então celebrados modelos adotados emblematicamente por Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Augusto Pinochet, no Chile, entre outros.

É verdade que o longo registro de serviços mal prestados já dera fortes sinais em nosso país, o que havia levado o governador Leonel Brizola a encampar operadoras no Rio de Janeiro em 1985 e a prefeita Luíza Erundina a aprovar na Câmara de Vereadores a lei de municipalização do transporte urbano paulistano. A avalanche neoliberal, no entanto, a mesma que extinguiu a Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU), soterrou as iniciativas de genuíno interesse público, fazendo prevalecer o discurso da ineficiência do Estado e da excelência da iniciativa privada.

Se o transporte coletivo, a despeito das honrosas exceções que confirmavam a regra, já não era grande coisa na maioria das cidades brasileiras, tratá-lo meramente com as leis do mercado levou-o às condições críticas que a população do Distrito Federal conhece tão de perto. Aqui, com intensidade ainda maior que em outros lugares, os serviços de transporte por ônibus concentraram-se nas mãos de poucos — no caso específico, três famílias — e atingiram níveis de degradação inimagináveis, se não fossem tão reais. Tudo em nome da escancarada acumulação primitiva de capital, não importando o que sofrem os usuários.

A força política desses grupos conseguiu manter o poder público longe de seus “negócios”, a ponto de os órgãos governamentais mal terem acesso aos dados operacionais (horários e itinerários praticados, por exemplo), e menos ainda aos valores de receitas e custos do sistema.

Em tal contexto, as iniciativas anunciadas no início do atual governo surgiram como um alento, uma demonstração de necessária e salutar vontade política para resgatar o papel de gestor do sistema para o Estado, ainda que houvessem suscitado compreensível ceticismo. De todo modo, os anúncios se materializaram, por exemplo, com o desmantelamento do escabroso esquema da Fácil, a deflagração do processo licitatório e a tenacidade em sustentá-lo nas esferas administrativas e judiciais contra as indecentes investidas dos que se acham donos do “negócio”.

Diante desse quadro, todos nós, cidadãos de bem do DF, temos motivos para torcer pelo sucesso da noticiada assunção e, na medida de nossas possibilidades, ajudar a fazer dar certo a gestão do serviço no interesse público. Se efetivamente der certo, a surpresa que a medida nos causou na manhã desta segunda-feira, em breve, será substituída por outra: por que demorou tanto?

(*) Professor do programa de pós-graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB)