Valor Online
24/6/2010
Como havia colocado, não mudaria a essência do que disse em 2000. Mas valem algumas adendos, inspirados no post do Paulo (Respeito por decreto?) e em um papo com o Eduardo, no blog dele.
Interessante como a faixa, aqui em Brasília, parece demonstrar que os níveis de observação das regras estão na proporção direta da percepção dessa presença do Estado, maior ou menor, em determinadas épocas ou lugares. E isto não se dá (apenas) com a identificação do policial/agentes de trânsito nas ruas, embora estes sejam indicadores óbvios e importantes. Um exemplo – gostaria de um dia poder verificar isso quantitativamente... – é ver como as faixas de pedestres mais apagadas (geralmente nas satélites mais distantes do plano-maravilha) acabam sendo menos respeitadas do que as demais.
Não creio que esse menor respeito seja por conta da menor visibilidade delas (vide foto acima, que tirei em Riacho Fundo II – not quite Abbey Road...). Penso que esta faixa apagada, assim como a uma sinalização precária (ou uma falta dela), uma calçada invadida ou uma calçada não existente, estão dizendo para os usuários das vias que o Estado não está ali. Está se ocupando de algo – assuntos, lugares ou pessoas – mais importantes. Portanto, o recado é: virem-se. Façam vocês mesmos suas regras. E isto, pela lógica, equivale a dizer “impõe-se na via quem pode, obedece e acomoda-se quem tem juízo”. Como em um presídio.
Por outro lado, a nossa faixa, onde funciona, continua sendo um para mim uma ícone fantástico (há pouco li um artigo que fiz para o Correio, há dez anos... não mudaria nada!). Foi uma senhora quebra de paradigma, de uma dimensão simbólica única. Acho que devo a ela o fato de teimar em achar que – exagerando – o mundo tem jeito, e continuar a insistir em caminhos para o nosso trânsito.
Ela parece, nessa experiência singular (exceção?...), subverter a lógica do mero cálculo do benefício individual e cada um. Já a tive para mim que nela, o respeito à prioridade ao pedestre encerra em si o que seria o grande gol da educação (de trânsito ou não): a legitimação e decorrente introjeção de um valor; da internalização e aceite da idéia de que “faz sentido”, cumprir esse preceito. Independentemente de multa. Veja bem: se o respeito a essa prioridade dependesse de um guarda, um agente de trânsito ou policial para garantir seu cumprimento essa lei já teria, há muito tempo, ido para o saco, já no primeiro governo que sucedeu Cristovam.
Mesmo a cara de desaprovação de um pedestre indignado não seria suficiente para garantir esse cumprimento, pois aqui, as filas duplas nas comerciais não parecem constranger o infrator, xingado pelo infeliz que ficou esperando o folgado tirar seu carroHá pouco reli um artigo que fiz para o Correio há dez anos, quando a faixa de pedestres em Brasília tinha três aninhos. O texto, que reproduzo abaixo, refletia o meu encantamento com essa que, para mim, foi uma das maiores revolução no trânsito daqui da capital. Encantamento, diga-se de passagem, não era só meu – achei o máximo o comentário do Clodo: "saio de casa procurando um pedestre para eu parar o carro". Era esse mesmo o espírito!...
Lembro-me ficar imaginando como se comportaria a geração de crianças – hoje adultas – que cresceriam em uma cidade que as priorizava na travessia da faixa. Um respeito bom (até) para cachorro, como mostra a imagem do “cidacão”, batizado pelo Miura, que me passou a foto). Lembro-me também que o brasiliense que tivesse pouca coisa para se orgulhar de uma cidade prisioneira de estereótipos e má fama, teria ao menos esse motivo para se orgulhar da cidade. Nisso o texto continua atual. Pensando bem, acho que, hoje, não mudaria nada nele....
A lição da faixa de pedestres
Victor Pavarino Filho
(Correio Braziliense, quarta feira, 2 de fevereiro de 2000)
John Lennon, um dos que atravessavam Abbey Road na foto histórica, dizia que o surpreendente não era os Beatles terem se separado. Incrível mesmo era os Rolling Stones ainda estarem juntos. De fato, a importância de algumas coisas parece às vezes ofuscar a relevância de outras. Em meio às discussões sobre acidentes, multas e radares, talvez não tenhamos ainda nos dado conta da real dimensão do advento da faixa de pedestres em Brasília.
Mais do que a proposição de grandes obras físicas, o respeito à faixa prestou-se a uma engenharia maior, indo além dos âmbitos técnicos e legais. O mérito está menos no aspecto prático da travessia do que no simbolismo encerrado na proposta.
A “subversão” mais óbvia implícita na faixa é estabelecer prioridade ao segmento menos contemplado no trânsito das cidades: os pedestres. Estes, não por coincidência, são também, em sua maioria, as pessoas menos favorecidas socioeconomicamente. Mas os benefícios da faixa são mais que poder atravessar a rua sem sentir-se um criminoso – o que por si já é um marco. O bem maior engendrado nessa revolução foi desmentir o mito de que em nosso trânsito a “cultura” não muda, entre outras máximas que insistem na inviabilidade da civilidade nestes trópicos.
Foram várias as tentativas de explicar o fato da lei da faixa ter dado certo em Brasília. E é provável que todas tenham sua parcela de razão. A euforia pela redução dos acidentes na cidade, a ousadia do comando do Batalhão de Trânsito, o empenho da imprensa, as entidades não governamentais e a determinação dos brasilienses devem todos, enfim, ter conformado a conjunção de fatores que viabilizaram a idéia.
Nos primeiros dias não faltaram – como já se esperava – desentendimentos e mesmo alguns acidentes. Mas em muito pouco tempo a desconfiança de motoristas e pedestres deu lugar ao que é já é rotina em países desenvolvidos. Em Brasília, contemplávamos, incrédulos, os carros parando em frente à faixa, sem semáforos ou ordem do guarda. Mas não era só poder atravessar a rua, sem correr desesperado. Parar na faixa também tornou-se um motivo de orgulho para o brasiliense, acostumado a ter sua cidade diminuída por estereótipos. Nas demais cidades – é bom lembrar – as pessoas ainda custam a acreditar que no Brasil há um lugar onde o motorista de uma BMW pare para uma empregada doméstica atravessar a rua.
Havia – e sempre haverá... – os que acham absurdo dar vez aos que julgam ser cidadãos de segunda-classe. Na mudança de governo, este jornal testemunhou um motorista furioso, ordenando a uma senhora que saísse logo da faixa “porque essa palhaçada iria acabar!”. Mas houve também quem protestasse contra a abolição da escravidão ou outras tentativas de vencer o atraso. Apesar deles, parar ante a faixa já é algo assimilado pela maioria dos brasileenses e será, para as próximas gerações, tão natural quanto outros procedimentos no trânsito. E tanto melhor que seja assim: algo entendido como direito e não como esmola ou concessão, sujeita aos humores do mais forte.
As crianças nascidas na Brasília “pós-faixa” acharão difícil conceber que em um passado próximo, não existia internet e havia quem questionasse o direito de se atravessar a rua. Com certeza irão se divertir com nosso provincianismo, ao ouvir que, no começo, as pessoas que vinham para Brasília punham os pés na faixa só para ver se os carros paravam mesmo. E que riam-se, deslumbradas, “lambuzando-se” de uma cidadania desconhecida...
A bem da verdade, acho que não seria exagero dizer que há em algo simples – mas tão emblemático – como a faixa de pedestres um projeto implícito de nação.
Com a faixa, surgiram problemas que não existiam quando também não existia o direito de atravessar a rua em segurança. São desdobra-mentos naturais dos avanços democráticos. Assim, como tudo mais, a travessia na faixa não está isenta de problemas. Há muito ainda a fazer, aprender e aperfeiçoar. Mas a lição ficou, como um recado aos demais esforços em intervir no nosso trânsito: é possível mudar.
Este é um espaço para conversar sobre tudo que seja TRÂNSITO na existência humana. Ou seja, aqui se pode falar de TUDO!