(Artigo publicado originalmente na edição de hoje do Correio Braziliense)
PAULO CESAR MARQUES DA SILVA
Professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), doutor em estudos de transportes pela University College London (Inglaterra)
A tarifa zero no transporte coletivo urbano entrou definitivamente na agenda política nacional a partir das manifestações do Movimento Passe Livre. No Distrito Federal, o movimento levou o governo local a se comprometer com a formação de grupo de trabalho específico para estudar a viabilidade da proposta. Sem dúvida, um passo importante. Não tardaram a surgir, porém, na imprensa e na boca de gestores e lideranças políticas e empresariais, os primeiros argumentos contrários. Entre eles destaca-se o alto custo do sistema. Cabe aí a pergunta: alto custo para quem?
Estudiosos têm-se debruçado bastante ao longo dos anos sobre o grande impacto do transporte no orçamento doméstico de moradores de nossas cidades. No outro lado da equação, gestores apressam-se em demonstrar os impactos nos cofres públicos caso os municípios deixem de cobrar dos passageiros os custos das viagens. O Governo do Distrito Federal, por exemplo, estimou em R$ 130 milhões o custo operacional mensal do sistema de transporte por ônibus, uma cifra que impressiona. Como também impressionou o valor de R$ 8 bilhões até 2016 que o prefeito de São Paulo afirmou ser preciso deslocar de outras prioridades para permitir a revogação do aumento de 20 centavos na tarifa local.
Como são apresentados, os cálculos levantam suspeitas de carregarem problemas de método. Com efeito, é de esperar que a tarifa zero resulte em aumento da demanda, assim como também é razoável que se desejem melhorias no transporte público, não apenas que ele seja de uso gratuito no futuro, mas com a (falta de) qualidade dos dias atuais. Se, por um lado, isso significaria que os custos estão subestimados, por outro, o mesmo poderia ser dito dos benefícios a serem proporcionados pela medida. Afinal, quanto seria possível deixar de gastar com a expansão do sistema viário, por exemplo?
Em suma, muita conta ainda precisa ser feita até que se chegue a uma quantificação convincente dos custos. Só não há dúvida de que eles são altos. Mas, então, quem deve pagar por eles? Para responder a essa pergunta, sugiro primeiro identificar quem realmente precisa dos serviços de transporte. Da forma como se constituíram ao longo dos dois últimos séculos, as cidades adquiriram dimensões tais que, no dia a dia, as pessoas precisam se deslocar grandes distâncias e gastar muito tempo nesses deslocamentos.
As pessoas das camadas menos favorecidas moram longe dos locais de trabalho, de serviços e de lazer, não por opção, mas porque sua renda não lhes permite morar perto, e essa mesma restrição de renda as impede de ter automóvel, ou pelo menos de usá-lo na vida cotidiana. Isso não significa, porém, que as cidades possam prescindir do deslocamento diário dessas pessoas, seja para vender sua força de trabalho, seja para consumir produtos e serviços que mantêm girando a roda da economia.
Ou seja, há algo muito errado no argumento que reduz a mobilidade urbana unicamente à dimensão de direito dos cidadãos. Antes disso, a mobilidade é uma necessidade das cidades. Melhor dizendo, o direito à mobilidade deve, sim, ser assegurado a todos, mas não há por que transferir às pessoas a responsabilidade por comprá-lo.
A solução da contradição passa necessariamente pela revisão dos conceitos. Em primeiro lugar, adotemos o entendimento de que, em vez de enxergá-lo apenas como um meio de assegurar à população de uma cidade o direito à mobilidade, o sistema de transporte público necessita ser tratado como necessidade vital da própria cidade.
Em segundo lugar, e em decorrência desse entendimento, construamos outro modelo de financiamento do sistema, sem onerar os passageiros com os custos de um serviço de cuja existência quem depende não são eles, mas a cidade que criou distâncias impraticáveis. Exatamente porque o custo do sistema é alto, não cabe cobrá-lo da parcela mais pobre da população. Em vez de estudar se a tarifa zero é viável, o Governo do Distrito Federal deveria estudar como viabilizá-la.
Por fim, precisamos refutar imediatamente, antes mesmo que alguém sugira, qualquer restrição da tarifa zero às viagens vinculadas estritamente a atividades como trabalho e estudo. A vida em sociedade não se resume à reprodução e venda da força de trabalho. O pleno exercício da cidadania implica a remoção de todo tipo de barreira ao pleno desfruto da vida independente. A tarifa cobrada do usuário de transporte público é uma dessas barreiras.
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