Abaixo, apontamentos para a fala que fiz hoje no 12º. Café Científico de Brasília, promoção da Embaixada da França e do IRD (Institut de recherche pour le développement), moderado pelo jornalista Daniel Rittner, do Valor Econômico, e que também teve a participação de Alexandre de Ávila Gomide e Nicolas Bautes.
A tarifa do transporte público como fator de exclusão social
Em artigo
publicado no final do século XX, o pesquisador francês Gabriel
Dupuy definiu assim a mudança paradigmática do “círculo mágico”
para a “dependência do automóvel”:
“O aumento no tráfego de automóveis levou à expansão da
rede viária, assim encorajando os proprietários de carros a dirigir
mais, mais pessoas a adquirir carros, mais uma vez um aumento no
tráfego foi seguido da expansão da rede, e assim por diante.”¹
Da forma
como se constituíram ao longo dos dois últimos séculos, as cidades
incorporaram distâncias tais que, no dia a dia, as pessoas precisam
se deslocar grandes distâncias e gastar muito tempo nesses
deslocamentos. Às parcelas da população cuja condição
socioeconômica permite é possível escolher onde morar – se nas
áreas mais centrais, onde o valor da terra é geralmente mais alto
mas os custos dos deslocamentos são mais baixos, ou nos arredores
bucólicos das cidades, com terrenos mais baratos (embora os custos
de construção sejam mais altos), aonde só o automóvel permite
chegar com algum conforto.
A
realidade das camadas menos favorecidas da população é bem outra.
As pessoas moram longe dos locais de trabalho, de serviços e de
lazer porque sua renda não lhes permite morar perto, e essa mesma
restrição de renda lhes impede de ter automóvel, ou pelo menos de
usá-lo na vida cotidiana. Isso não significa, porém, que as
cidades possam prescindir do deslocamento diário dessas pessoas,
seja para vender sua força de trabalho, seja para consumir produtos
e serviços que mantêm girando a roda da economia.
Ou seja,
há algo muito errado no argumento que reduz a mobilidade urbana
unicamente à dimensão de um direito dos cidadãos. Antes disso, a
mobilidade é uma necessidade das cidades. Melhor dizendo, o direito
à mobilidade deve, sim, ser assegurado a todos, mas não há por que
transferir às pessoas a responsabilidade por comprá-lo.
Acontece
que o sentido de público há muito desapareceu da cartilha por onde
reza a grande maioria dos gestores de sistemas de transporte urbano.
Para eles, os serviços de transporte devem ser prestados e
consumidos unicamente segundo as leis do mercado. O único papel do
Estado é o da regulação econômica, assegurando condições
adequadas de concorrência entre os prestadores do serviço.
Esses
operadores, por sua vez, não deixam de exercer o papel que mais
agrada aos capitalistas brasileiros – o de reivindicar a proteção
do Estado contra os riscos que ameacem seu negócio. Nas palavras de
Otávio Cunha, representante do empresariado do setor:
“Os aumentos das tarifas do transporte coletivo urbano são
simplesmente o resultado do círculo vicioso que ocorre porque o
transporte público torna-se cada vez menos competitivo em relação
ao transporte privado e atrai cada vez menos passageiros pagantes,
que dividem custos crescentes.”²
Em um
aspecto os empresários têm razão. O Estado ameaça o mercado
quando tira dele o consumidor de maior renda. No mesmo artigo, mais
adiante, Otávio Cunha põe o dedo na ferida:
“O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que
os subsídios diretos ao transporte individual são 11 vezes maiores
do que os concedidos ao transporte público urbano. Nessa mesma linha
de incentivo ao transporte individual, pode-se incluir a
redução/eliminação do Imposto sobre Produção Industrial (IPI)
incidente sobre os veículos automotores populares.”
Há,
portanto, uma contradição entre as diretrizes de mobilidade
sustentável instituídas pela lei n. 12.587/2013 e as medidas
econômicas desenhadas pelo governo federal. Estas últimas acabam
por alimentar o círculo vicioso a que se referia Gabriel Dupuy há
quase quinze anos.
A meu
ver, a solução dessa contradição passa necessariamente pela
revisão dos conceitos. Em primeiro lugar, sugiro que seja adotado o
entendimento que propus no início deste texto. Em vez de o enxergar
apenas como um meio de assegurar à população de uma cidade o
direito à mobilidade, é preciso tratar o sistema de transporte
público como uma necessidade vital da própria cidade.
Em
segundo lugar, e em decorrência desse entendimento, é necessário
construir um outo modelo de financiamento dos serviços. Não faz o
menor sentido onerar os passageiros com os custos de um serviço de
cuja existência quem depende não são eles, mas a cidade que criou
distâncias impraticáveis.
Por fim,
precisamos refutar imediatamente, antes mesmo que alguém sugira,
qualquer restrição à realização das viagens em transporte
público que as vincule estritamente a atividades como trabalho e
estudo. A vida em sociedade não se resume à reprodução e venda da
força de trabalho. O pleno exercício da cidadania implica a remoção
de todo tipo de barreira ao desfruto da vida independente.
(1) Dupuy,
G. (1999). From the 'magic circle' to 'automobile dependence':
measurements and political implications. Transport Policy, 6, p.
1-17.
(2) Cunha,
O. (2013). A verdade sobre o aumento das tarifas de ônibus.
Correio Braziliense, 27/02/2013, p. 25
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