segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Desastres no Trânsito




artigo publicado originalmente no jornal Correio Braziliense

enviado a mim hoje pelo autor, via e-mail

Desastres no Trânsito
“O mais escandaloso do escândalo é que nos acostumamos a ele” 
Simone Beauvoir

Preocupado com índices econômicos, superávit primário, taxas de juros e metas de inflação, que garantem nossa ascensão à sexta economia do mundo, o governo brasileiro parece não se dar conta da tragédia que impera nas nossas ruas. Como só viaja de avião, a burocracia estatal é  incapaz de compreender a tragédia das estradas, pontilhadas por cruzes, e se restringe a apresentar a contabilidade fúnebre após as festas de fim de ano, carnaval e feriados prolongados, como se isso ajudasse ou confortasse as famílias das vítimas. O governo atribui a ocorrência dos desastres apenas à irresponsabilidade dos motoristas, e se limita a aumentar o infortúnio no inventário nefasto. Convenientemente desconsidera sua responsabilidade na habilitação de motoristas, no estado precário das estradas e na fiscalização do trânsito. Submetido à barganha política de quinta categoria, o órgão nacional de trânsito, o Denatran, tem na inépcia sua expressão máxima. O corolário do descaso não poderia ser outro: em 2010 batemos o recorde de mortes no trânsito e em 2011 superaremos essa marca sem qualquer dificuldade.
Acreditando na metamorfose da tragédia em estatística, governo e sociedade parecem se unir em torno do lema do ditador soviético Joseph Stálin que “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”. Essa parece ser a única explicação plausível para não nos darmos conta de que nos últimos trinta anos um milhão de pessoas morreram no nosso trânsito e 20 milhões ficaram feridas. Nesse período, cinco milhões de brasileiros foram para cadeiras de rodas ou ficaram com lesões irreversíveis. Por incrível que possa parecer, o custo de um trilhão de reais dos desastres de trânsito não está contabilizado nos índices econômicos.
Países desenvolvidos tratam o trânsito com seriedade. Em 1966, o presidente Lyndon Johnson foi alertado sobre a mortandade no trânsito do seu país. “Mais de 1.500.000 de nossos cidadãos morreram em nossas ruas e estradas neste século; cerca de três vezes o número de americanos que perdemos em todas as nossas guerras”, disse ao assinar o “Plano de Segurança no Trânsito”. Em 2010, os Estados Unidos tiveram o menor número de mortos no trânsito desde 1949. A Bélgica, outro exemplo, multiplicou por dez sua frota de veículos automotores nos últimos 60 anos, mas em 2010 teve o menor número de vítimas de trânsito de sua história. Esses países fazem diagnósticos dos problemas, realizam pesquisas em profundidade, estabelecem metas e promovem ações para reduzir a violência no trânsito. Os programas desses governos são robustos, há comprometimento das autoridades e efetiva participação da sociedade.
No Brasil, temos um longo caminho a percorrer. Em muitos aspectos parece que estamos na idade da pedra. Nossas estatísticas de trânsito deixam muito a desejar. Relegadas a um plano secundário, as perícias, essenciais para estabelecer medidas preventivas, são feitas à matroca. Sem perícias criteriosas as demandas judiciais dos desastres de trânsito não prosperam. A Justiça, de outra parte, tem mostrado excessiva benevolência com os motoristas infratores, promovendo a terrível impunidade, que anda de mãos dadas com a irresponsabilidade e o risco. Construídas com tecnologia dos anos 1950, nossas estradas são perigosas, incompatíveis com os tempos atuais. Quando se modernizam para os carros, nossas cidades espremem pedestres e ciclistas entre o muro e a morte. Milhões são gastos em viadutos enquanto passagens para pedestres, calçadas e ciclovias enfrentam a intransponível má vontade burocrática. Mal equipados e sem treinamento, os agentes de trânsito não conseguem conferir à fiscalização uma eficiência mínima. Para completar a patogenia, boa parte dos nossos veículos circulam sem manutenção à espera de mais vítimas.
É preciso dar um basta! Todos os dias milhares de brasileiros são feridos ou tem a vida precocemente interrompida por desastres de trânsito. Não podemos mais esperar. Medidas como uso do cinto de segurança, controle de velocidade em áreas urbanas, aperfeiçoamento da fiscalização, inspeção de segurança dos veículos, educação de trânsito para pedestres e ciclistas, que demandam poucos recursos e tem grande impacto na redução do número de vítimas, podem ser o começo da virada.
Temos que encarar essa empreitada. Chega de contar mortos e transformá-los em estatísticas, para tentar esmaecer a face cruel do nosso trânsito. Os belos índices econômicos não conseguem camuflar a procissão de cadáveres e mutilados nas ruas, ou estancar o choro das famílias enlutadas. Chega de inação, de indiferença, de insensibilidade. Basta!

David Duarte Lima, doutor em Segurança de Trânsito, é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, e presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito – IST.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Vetos que denunciam

Tínhamos tudo para começar 2012 comemorando a sanção da Lei 12.587, que institui as diretrizes da Política da Mobilidade Urbana. Lamento, mas esta postagem vai colocar água no chopp.

Depois de muitos anos de construção, com idas e vindas, o que foi concebido para ser o Estatuto da Mobilidade Urbana Sustentável perdeu alguma substância, mas ainda assim foi para o Congresso Nacional bem respaldado. Passou por bons debates na sociedade, exaustivos embates no Conselho das Cidades e uma difícil negociação com a Casa Civil e a equipe econômica do governo Lula. Depois de tudo isso, mais uns cinco anos de tramitação entre a Câmara dos Deputados e o Senado Federal sem alterações de conteúdo deixaram a convicção de que se tratava de um texto definitivo.

O que podia ser só motivo de comemoração traz também um quê de preocupação, que vem dos vetos da Presidenta da República que aparecem no texto publicado hoje no Diário Oficial. Foram vetados os parágrafos 1º. e 3º. do artigo 8º., o inciso V do artigo 16 e o inciso IV do artigo 18. Sabem o que eles diziam? Vamos lá:

  • Os parágrafos do artigo 8º. proibiam a concessão de gratuidades nos serviços de transporte público às custas dos usuários pagantes, devendo as gratuidades terem fontes de financiamento previstas em leis específicas.
  • O artigo 16 lista as atribuições da União e o artigo 18, as atribuições dos municípios. Os dois incisos vetados falavam, respectivamente, de "adotar incentivos financeiros e fiscais para a implementação dos princípios e diretrizes desta Lei" e "implantar incentivos financeiros e fiscais para a efetivação dos princípios e diretrizes desta Lei".
Posso estar muito enganado, mas desconfio que a equipe econômica do governo Dilma resolveu meter o bedelho e acabou demonstrando que no fundo ainda prevalece a visão de que a questão do transporte urbano deve ser resolvida pelo mercado e com as leis de mercado.

Pois é, ainda não é dessa vez que veremos o Estado assumir integralmente suas responsabilidades na promoção da Mobilidade Urbana Sustentável...