terça-feira, 26 de maio de 2009

A tecnologia a serviço da segurança

(Artigo também publicado na Gazeta do Povo de hoje)

A tragédia da colisão na madrugada do dia 7 de maio tem provocado mais que a indignação popular em face de um crime de trânsito; há também o temor por sabermos que os poderosos mais uma vez vão cuidar de um dos seus. O temor de que a lei seja uma para nós e outra para os eleitos. Nenhum de “nós” ignoraria a notificação da perda da Carteira de Habilitação e não nos arriscaríamos a dirigir a alta velocidade depois de beber – a não ser que nos achássemos totalmente imunes às consequências. E a diferença entre imunidade e impunidade é apenas uma letra: P.

P de poder. P de prepotência. P de pizza.

A gente tem razão de se preocupar. Em outubro de 2001, João José Arruda Júnior, sobrinho do atual governador, se envolveu num acidente quando a camionete que dirigia atingiu outro veículo, matando duas jovens e ferindo mais quatro.

Houve alegações e suspeitas de interferência e carteiraços, porém em 2003 o rapaz foi condenado pela justiça a três anos e nove meses de detenção, pela morte de duas pessoas, e a mais seis meses, por ter fugido do local sem prestar socorro às vítimas. A condenação foi por ter furado o sinal; não houve prova de outros crimes como excesso de velocidade ou intoxicação. Por alegados bons antecedentes, o juiz transformou a pena de detenção em multa de cem salários mínimos às famílias das vítimas ou a instituições sociais ou em trabalho comunitário por 1.550 horas. O réu perdeu a carteira por nove meses. Mudou alguma coisa nos últimos oito anos? Sim. Não as leis. Nem a sensação de alguns do andar de cima de se acreditarem acima dos plebeus. O que mudou foi a disseminação da tecnologia e da informação.

Os radares – ainda odiados por muitos – modificaram o comportamento da grande maioria dos motoristas curitibanos, que hoje trafegam pela cidade abaixo de 60 km/h, uma diferença brutal em relação às velocidades médias de dez anos atrás. Junto com as lombadas eletrônicas, os radares “acalmaram” o trânsito e salvaram dezenas de vidas. E ainda permitem rastrear o comportamento antissocial, registrando – no caso do deputado – um histórico de abusos de velocidade. Os exames de sangue são rotineiros e as amostras são guardadas – para prevenir eventuais “esquecimentos” no andamento de investigações. E há gravações de vídeo em bares e postos de gasolina, ou seja, uma vasta disponibilidade de material público e privado capaz de enfrentar qualquer esforço do P de panos quentes.

No trânsito, a tecnologia moderna é odiada por alguns exatamente por ser difícil de burlar. Não aceita “carteiraço”, não pode ser subornada e ainda trabalha 24 por dias por sete dias na semana, sem férias ou greves. Mas veio para ficar e – mais cedo ou mais tarde – teremos um elemento a mais nos fiscalizando. Não me refiro a semáforos “inteligentes” (lamento informar aos leitores e alguns animados de plantão que sem uma programação adequada não existe semáforo inteligente), mas à questão de respeito ao sinal vermelho.

O comportamento de muitos (maus) motoristas curitibanos é de aproveitar todos os quatro segundos do tempo amarelo – e o(s) primeiro(s) segundo(s) do sinal vermelho – como se fossem verdes. A não ser que o padrão de acidentes tenha se modificado nos últimos anos, a grande maioria dos acidentes graves acontece justamente nos cruzamentos sinalizados com semáforos. E acontecem porque alguém fura o sinal. Uma matéria recente do Caderno G citou que na madrugada curitibana há um festival de sinais furados em alta velocidade com “buzinadinhas”.

A tecnologia existe para minimizar isso: é fácil flagrar quem fura o sinal vermelho. “Ahhh” – ouço dos poderosos – “cada semáforo equipado com uma geringonça dessas vai virar um ‘assaltódromo’”.

Isto não é o risco: a presença da figura humana (ameaçadora ou não) invalida qualquer registro de infração. O objetivo da fiscalização é de melhorar a segurança e não a criação de fabriquetas de multa. O registro de infrações também poderia ser interrompido durante a madrugada. Mas o equipamento pode continuar a registrar a velocidade e reconhecer a placa de todos os que passam – os doidos, os garotões fazendo racha e os bêbados. Inclusive a velocidade dos veículos cruzando os semáforos operando em pisca alerta, como no cruzamento das ruas Paulo Gorski e Monsenhor Ivo Zanlorenzi. No futuro não haverá discussões sobre possíveis registros de velocímetros: as velocidades dos envolvidos serão gravadas num chip.

Sabendo que imunidade e impunidade têm seus limites, até os poderosos serão obrigados a se comportar. E o trânsito da noite também será mais calmo.

Com P de Paz.


Alan Edward Ramsey Cannell é engenheiro formado pela University of London com mestrado em transportes pela University of Leeds. É membro-fundador do Programa Criança Segura.

Uma questão de cidadania

(Este artigo foi publicado originalmente na edição de hoje do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba)

Ao contrário da liberdade de ir e vir, a possibilidade de dirigir não é um direito natural assegurado por dispositivo constitucional. Para conduzir veículos, é preciso ser portador de documento válido de habilitação. No Brasil, a carteira de habilitação é uma licença concedida pelo Estado, de natureza temporária e revogável, que o cidadão só pode obter, e depois manter, sob determinadas condições.

O direito que a licença dá também só pode ser exercido se alguns requisitos forem cumpridos. Por exemplo, o uso de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que cause dependência – incluindo medicamentos – é incompatível com com a atividade de conduzir veículos. O Código de Trânsito Brasileiro, com a redação dada no ano passado pela Lei nº 11.705, proíbe qualquer concentração álcool no sangue, e os efeitos desse novo dispositivo têm sido inegavelmente notáveis nos índices de segurança.

Outro dos requisitos a serem cumpridos é que o condutor não tenha atingido 20 pontos (equivalentes a quatro infrações graves) no espaço de 12 meses anteriores. Tanto no caso da alcoolemia como no da pontuação, há uma forte dependência da fiscalização. Mas também é razoável esperar-se que prevaleça a atitude cidadã de condutores, abstendo-se de descumprir a legislação – tanto mais quando o condutor em questão é um homem público.

A se confirmarem as informações divulgadas na imprensa desde o início do mês, a ocorrência protagonizada pelo deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho é revoltante em diversos aspectos, agravada pela circunstância de se tratar de um legislador. Se nos ativermos apenas aos acontecimentos daquela noite, encontraremos um indivíduo alcoolizado, com a habilitação suspensa, conduzindo um veículo a 190 km/h quando atinge outro, matando seus dois ocupantes. Imagens do veículo atingido divulgadas na imprensa são chocantes.

Não pretendo, porém, fazer um julgamento do deputado. Prefiro comentar um conjunto de possíveis lacunas ainda permitidas, quer pela legislação, quer pelas interpretações de membros do Poder Judiciário ou ainda pela atuação dos órgãos de trânsito.

O problema do excesso de velocidade, por exemplo, é um dos que, claramente, conta com atitudes indulgentes de diversas esferas do poder público para não ser atacado como merece. Um passo importante no sentido de reverter esta tendência foi dado em novembro de 2007, quando o Superior Tribunal de Justiça confirmou o indiciamento por homicídio qualificado de Rodolpho Félix Grande Ladeira, acusado de provocar a morte de Francisco Augusto Nora Teixeira em Brasília, quando colidiu com seu veículo a mais de 160 km/h. O STJ entendeu que, ao trafegar com velocidade tão superior ao limite da via, Rodolpho ofereceu perigo deliberadamente. Ora, se provocar morte nessas circunstâncias é homicídio doloso, trafegar a tão alta velocidade não seria uma tentativa de homicídio? Não poderia o infrator ser rigorosamente condenado por isso, antes de causar vítimas?

No caso de suspensão ou cassação da habilitação, será que o Estado age efetivamente para impedir que o condutor saia às ruas dirigindo? Se não estou enganado, as autoridades de fiscalização do trânsito limitam suas ações essencialmente às blitze – que, obviamente, não podem deixar de ocorrer. Mas não haveria meio mais eficaz de proteger a população de condutores perigosos? Sim, porque é disso que se trata. Antes que alguém venha arguir que defendo um Estado policial, devo dizer que o assunto é de ações preventivas de segurança pública, e o interesse público precisa estar acima da preservação irrestrita da privacidade dos infratores.

Reconheço que estas não são mais que reflexões, com poucas chances de virem a se materializar em alterações normativas. Mas, voltando às lacunas a que me referi algumas linhas atrás, talvez as mudanças de que mais precisamos sejam mesmo de ordem cultural mais do que de natureza legal.


Paulo Cesar Marques da Silva é engenheiro mecânico pela UFBA, mestre em engenharia de transportes pela Coppe/UFRJ e doutor em estudos de transportes pela Universidade de Londres (University College London). É professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB).


quarta-feira, 20 de maio de 2009

Campanhas educativas de trânsito

O Diário Oficial da União publicou hoje a Resolução n. 314/09 do Contran, que "estabelece procedimentos para a execução das campanhas educativas de trânsito a serem promovidas pelos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito".

Não se trata de uma resolução normativa da mesma natureza das que estamos acostumados a ver. O coração da resolução é seu anexo, intitulado "PROCEDIMENTOS PARA A REALIZAÇÃO DE CAMPANHAS EDUCATIVAS DE TRÂNSITO". É uma orientação que resulta do acúmulo de estudos, consultas e análises de experiências bem e mal sucedidas, e que pode (creio até  que deve) ser seguida não apenas pelos órgãos e entidades que compõem o SNT, mas por todos os entes que se interessam em promover a segurança e valorizar a cidadania no nosso trânsito.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Não se pode elogiar

Fiz ontem um comentário que terminava elogiando a diligência do corpo técnico do Detran-DF. Hoje, tenho que registrar uma crítica.

Meio-dia, hora de saída de aula para uns, volta para casa para outros, o Detran mantinha bloqueadas pelo menos duas saídas da UnB e fechado para a realização dos testes um trecho da L3 Norte, sentido Sul-Norte. E sem nenhum aviso prévio...

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Galeria urbana

E já que ainda ontem falávamos de pedestres e de seus desafios em nossa cidade, aí vai uma recomendação: visite o ensaio fotográfico Galeria Urbana, de Antônio Alberto Nepomuceno. Aliás, visite toda a coleção. Vale a pena!

Fim do mistério

Na quarta 6 e no domingo 10 deste mês postei textos e fotos sobre uma espécie de showroom, como disse Victor, que se instalou nas imediações do Hospital Universitário de Brasília. Hoje, voltando do almoço, vi que havia um movimento incomum de gente no local, além de veículos estacionados no gramado da UnB.



Aproximei-me um pouco e constatei que se tratava de um teste, como diziam placas afixadas nos equipamentos. Enquanto eu fotografava, vi um agente do Detran-DF percorrendo o trecho em uma motocicleta.



Aproximei-me ainda mais e, reconhecendo amigos entre os técnicos do Detran ali presentes, perguntei que testes eles estavam fazendo. Tratava-se de procedimentos de um processo licitatório do órgão para aquisição de novos equipamentos.

Findo o mistério, fica aqui, para os críticos contumazes da fiscalização eletrônica de velocidade (aqueles que enxergam na medida um mero mecanismo arrecadador para pegar condutores incautos), o registro da seriedade com que os técnicos de trânsito tratam o assunto.

Quanto aos tomadores de decisão (os governantes e demais dirigentes que demagógica e irresponsavelmente insistem em substituir "pardais" por barreiras) mantenho todas as críticas que já fiz.

domingo, 17 de maio de 2009

Eppur si muove

Vendo os últimos posts do Paulo – O Mistério da L3 e Pedestres têm vez? – dá a sensação de que os anos passam, mas o que vemos de evolução desde que havíamos analisado as condições dos pedestres nestes lugares (em fins do século passado, ainda sem um santo Google Earth...)?

Os profissionais “reconhecem que isso (as condições do pedestre) deve ser repensado, e estão reciclando seus conceitos”. Ah, bom. O Vaticano levou um tempinho também para reconhecer recentemente que Galileu não estava assim tão errado. Nesse ritmo, estamos bem. Enquanto reconhecem que algumas coisas devem ser repensadas – o que já é um passo... – a lusitana roda e atropela. E enquanto repensam, aliás, os pedestres continuam sem calçadas para descer da L2 para a UnB, no caminho ao lado do Cean. Não deve, como sempre, haver verba prevista para tanto. Ela pode ter ido para um certo showroom ali perto...



Pedestres têm vez?

O Correio Braziliense que circula hoje tem uma boa matéria (também disponível na internet) sobre as condições que pedestres enfrentam em vias do Distrito Federal. O tema foi tratado por dois graduandos de Engenharia Civil da UnB que orientei em projetos de Iniciação Científica. Os trabalhos deles consisitiram em desenhar e testar procedimentos metodológicos para analisar as soluções que são dadas a conflitos entre fluxos de pedestres e fluxos veiculares; Antônio Marcos estudou o ponto de vista de pedestres e Glauber, o de técnicos de órgãos de trânsito.

Antônio Marcos constatou que os pedestres aprovam as medidas que são adotadas, considerando que algum tratamento é melhor que nenhum. Do relatório final de Glauber, vale a pena transcrever um trecho:

A partir do estudo pôde-se identificar que os profissionais, quando questionados sobre os conceitos de conflitos de tráfego, ainda seguem uma tendência de focarem o componente veicular do trânsito, identificando os cruzamentos e as rotatórias como destaques, citando dentre os elementos principais causadores desses conflitos o aumento do fluxo veicular, a prática de velocidades elevadas, além da geometria viária. Mas quando seguem para a análise das imagens, eles em sua maioria identificam também como elemento formador do trânsito o pedestre, além identificar que eles são a parte mais frágil dentro do sistema viário.

Identifica-se ainda que o fluxo veicular ainda é o aspecto principal considerado pela maioria dos técnicos. Porém, todos reconhecem que isso deve ser repensado, e estão reciclando seus conceitos tentando considerar de forma eqüitativa os três elementos formadores do trânsito, a via, os veículos e as pessoas, tendo estas últimas maior importância em todo esse processo.

Só para termos ideia, seguem exemplos de interseções. São só alguns exemplos da Asa Norte, com uma comparação entre os caminhos que os técnicos que as desenharam esperavam que os pedestres seguissem, e os caminhos que as pessoas realmente fazem.

Na via W3 Norte, o que os técnicos previram:


O que as pessoas fazem:



Entre as SCLN 300 e as EQN 500, como os técnicos previram:


O que as pessoas fazem no mesmo local:


Agora, a melhor de todas - como os técnicos esperam que as pessoas caminhem ao longo do Exinho:


E o que as pessoas de carne e osso realmente fazem:


domingo, 10 de maio de 2009

Mistério na L3 Norte

Em minha postagem anterior, de cinco dias atrás, comentei a instalação de uma barreira eletrônica na via L3 Norte de Brasília. Não via explicação para para ela num ponto que não requer redução de velocidade. Agora aumentou o mistério. Como o leitor pode ver na foto abaixo, multiplicam-se os dispositivos no mesmo ponto.


Alguns metros antes da barreira escandalosa (3) que mereceu meu comentário no dia 6, surgiu um conjunto de painéis laterais (2) e, ainda um pouco antes, uma barreira mais convencional (1). Tudo isso para manter a velocidade de 60 km/h que é o limite regulamentado para toda a via.

Continuo sem entender, mas agora acho que resolveram transformar aquele trecho num campo de testes de equipamentos eletrônicos de controle de velocidade. É só o que me ocorre. Ainda assim, fico sem saber o que exatamente se pretende testar desse jeito. Também não sei quem é que está fazendo o suposto experimento. Mas achei curioso que, nesta manhã, um cidadão (foto abaixo) sem qualquer identificação que fizesse supor tratar-se de um agente de trânsito, estava desviando os veículos para dentro da UnB, enquanto os colegas trabalhavam nos ajustes da perafernália.


Será que privatizaram a L3 Norte? Esperemos os próximos capítulos.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

De novo, as barreiras

Brasília está ganhando uma roupagem nova em termos de sinalização e controle de tráfego. A via L3 Norte, por exemplo, ganhou a barreira eletrônica da foto abaixo, nas proximidades do Hospital Universitário de Brasília.


Trata-se de um equipamento volumoso, que provoca fortíssimo impacto visual, muito mais do que as barreiras antigas, hoje instaladas onde se requer redução de velocidade. Às vezes são casos de reduções fortes. Na via L4 Sul, onde há reduções de 25% (de 80 para 60 km/h), os dispositivos são muito menos chamativos. Isso, é bom que se esclareça, sem qualquer tipo de prejuízo a sua função de chamar a atenção de condutores para a seção da via que requer a desaceleração.

O curioso sobre o equipamento da foto é que ali na L3 Norte não há qualquer redução da velocidade. O limite é de 60 km/h em toda a extensão da via. Então, para quê serve o espalhafato? Não estaríamos aqui diante de um caso em que as autoridades de trânsito estão indicando que o limite pode ser desobedecido fora do ponto onde o equipamento está instalado? 

(Discuti isso em outra postagem e não vou repetir meus argumentos aqui - a postagem original, no Blog do Noblat, rendeu um bom debate).

O fato é que fiquei com uma pulga atrás da orelha: será que as autoridades de trânsito do Distrito Federal estão pensando em aumentar o limite de velocidade da L3 Norte? Se for essa a intenção, vou tratar do assunto em outra postagem, na linha de um artigo que publiquei no Correio Braziliense em maio de 2007 (cópia no portal da Secom/UnB). Por enquanto, com todo cuidado para não espantar a pulga, vou manter a orelha em pé...

domingo, 3 de maio de 2009

O "corredor"

(Este texto de Eduardo Biavati foi postado originalmente ontem no blog do autor)

No último dia 7 de abril, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.650/03 [arquivo em PDF], que trata da proibição da circulação de motocicletas entre as filas de veículos, o chamado “corredor”.

As reações de oposição ao Projeto de Lei foram imediatas. Em menos de 15 dias, o assunto foi tragado pelo ralo usual dos recursos regimentais, interpostos pelos Deputados Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), Jair Bolsonaro (PP-RJ), William Woo (PSDB-SP) e Ciro Nogueira (PP-PI) [arquivos em PDF], em mais uma demonstração da alta sensibilidade do Congresso Nacional a qualquer assunto que diga respeito à nossa vida no trânsito.

O assunto vai agora a votação em Plenário, sabe-se lá quando, porque afeta “sobremaneira odireito dos usuários de transporte ciclomotores e afins trafegarem pelos grandes centros urbanos”, furtando da motocicleta “sua maior característica, qual seja a agilidade do deslocamento”, de acordo com os nobres parlamentares.

A bancada do “corredor” ecoa, portanto, a mesma poeira de idéias defendidas em artigo do presidente da Associação Brasileira de Motociclistas (ABRAM), publicado pela Folha de São Paulo no último dia 25 de abril.

Já que tudo será decidido em Plenário, como manda o figurino democrático, vale a pena questionar o que está em jogo.

56. O artigo natimorto

O projeto de lei em discussão reintroduz uma disposição vetada (o antigo artigo 56) do Código de Trânsito em 1998 que tratava todos os veículos… como veículos, submetendo-os, portanto, às mesmas regras de circulação.

Para o Código, automóveis, motocicletas, caminhões ou ônibus são a mesma coisa: VEÍCULOS AUTOMOTORES. Veículos automotores, por sua vez, transitam em FAIXAS DE TRÂNSITO, ou seja, em uma das áreas longitudinais em que uma pista de rolamento pode ser subdividida. As faixas geralmente são sinalizadas por marcas viárias, que separam e ordenam a circulação e estabelecem as regras de ultrapassagem. Não está prevista outra possibilidade para o posicionamento na via: TODOS os veículos automotores devem ocupar o espaço delimitado para a faixa de trânsito, formando, portanto, uma fila. E, como toda fila, essa tem também sua regra. Os veículos deve transitar na faixa de trânsito mantendo DISTÂNCIA DE SEGURANÇA lateral e frontal em relação aos demais veículos, bem como ao bordo da pista.

Quando vemos do alto uma avenida completamente congestionada, temos a imagem perfeita das filas compactas de veículos em cada uma das faixas e é impossível não perceber que entre as filas forma-se um… “corredor”. No meio do caos da grande cidade esqueceram um pedaço livre de asfalto? Não, não esqueceram: emparedado pelas filas, o “corredor” é a soma das distâncias laterais de segurança dos veículos em suas respectivas faixas. O espaço está livre, mas tem “dono”.

Como era e continua sendo impossível que um automóvel, ou caminhão ou ônibus ocupe esse “corredor”, pelo simples fato de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, jamais foi necessário estabelecer uma regra para isso. O natimorto artigo 56 estabelecia simplesmente a ISONOMIA da regra para todos os veículos – vetando, portanto, à motocicleta a ocupação do “corredor”, a circulação irregular sobre a sinalização horizontal e, sobretudo, o esgotamento da distância de segurança dos demais usuários do sistema viário.

A ideologia da agilidade: vantagens privadas x interesse público

O veto ao artigo 56 não autorizava a ocupação do “corredor”, mas foi exatamente isso que ocorreu porque o ato da Presidência da República (sim, o artigo foi vetado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso) consagrava o conceito da indústria de motocicletas, agora repetido por seus lobistas, de que a motocicleta não é um veículo como os demais.

Os porta-vozes da indústria defendem em uníssono que, por uma característica intrínseca, genética, histórica, a razão de ser da motocicleta é a AGILIDADE, é sua não-submissão ao fluxo do trânsito, é sua liberdade de escapar da condição de veículo automotor. Ora, carro é carro; moto é moto!!

O marketing vitorioso da indústria de motocicletas depende visceralmente dessa idéia de agilidade: o que se vende não é apenas a independência da locomoção sobre duas rodas, mas a libertação estritamente individual dos congestionamentos e da lentidão que imobilizam a grande cidade.

Como isso é possível? Ocupando-se o último espaço desse sistema viário cada vez mais saturado – o “corredor”, aquele naco de asfalto “dando sopa”. Os motociclistas tornaram o “corredor” disponível para si às custas da segurança de todos os demais usuários. O “corredor” é o roubo da segurança coletiva para usufruto exclusivo dos motociclistas.

Esse papo da agilidade da moto é uma farsa que esconde a defesa do privilégio de se colocar à margem das regras estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O privilégio é ser um NÃO-VEÍCULO. Sem essa de faixa de trânsito, de sinalizações pintadas no chão, de regras de ultrapassagem, de distância de segurança – o “corredor” inaugurou o direito das duas rodas, o CTB do B.

O “corredor”

Por omissão, por conveniência política, ou por absoluta incapacidade de fiscalização, nenhum órgão gestor de trânsito no país confrontou a tomada do “corredor” pelos motociclistas. Perdidos em discussões profundas sobre se o “corredor” era uma ultrapassagem ou não, ou sobre quantos centímetros definiriam, afinal, a tal distância de segurança, a autoridade pública e seus intelectuais fingiram-se de mortos e tomaram de barato que a vida era assim mesmo, um destino sobre duas rodas, fazer-o-quê?

Na última década ficou claro que o Poder Público não tinha poder, muito menos caráter público, e contribuiu decisivamente para converter o veto do artigo 56 em uma autorização de fato para as motocicletas circularem entre carros. O resultado concreto qualquer um assiste na TV.

Olhando bem do alto, parece mais uma daquelas incríveis invenções brasileiras, em que tudo se ajeita – uma fila de carros aqui, outra ali, um cordão de motos no meio. Houve espelhos retrovisores arrancados, chutes na porta, alguma gritaria e uns sustos, mas olhe lá embaixo: estão todos convivendo, partilhando o espaço exíguo, cada um da sua maneira. Ô povo criativo!

Do alto, tudo é lindo, até mesmo plantações de soja, cana e algodão comendo a selva amazônica. De perto, bem ao nível da rua, a história é outra. Nas principais vias de São Paulo, mais de 70%de todos os acidentes registrados envolvem motocicletas. Em que posição na via elas estavam? Quase 40% de todos os atendimentos do Corpo de Bombeiros ou da SAMU são acionados para resgatar vítimas de acidentes envolvendo motocicletas. Onde eles encontram o motociclista?

Se o Presidente da ABRAM pudesse articular informações para além do mundinho limitado de sua experiência individual sobre duas rodas, ele também veria que a violência do trânsito paulistano é INDISSOCIÁVEL do modo de condução da motocicleta no “corredor”. Ao invés de afirmar que o “corredor” é seguro porque “nunca presenciei um acidente de moto no corredor”, ele deveria questionar as circunstâncias em que ocorrem os acidentes e as mortes de motociclistas atualmente em São Paulo.

É muito estranho que alguém que ande tanto por aí nunca tenha visto um motociclista indo ao chão no “corredor” e terminar esmagado pelas rodas de um caminhão nas marginais em São Paulo, ou em qualquer outro lugar da cidade, tanto faz: em São Paulo, de cada 10 acidentes de trânsito que geraram vítimas, 6 envolveram motocicletas, em 2008. E isso nos leva à pergunta que realmente importa: quem são essas vítimas?

Segurança é vontade política

O que estamos discutindo verdadeiramente quando cogitamos proibir a circulação da motocicleta no “corredor” não é a segurança do motociclista. Não há dúvida de que ele é a principal vítima da própria conduta, mas ele é apenas uma das vítimas.

Em nome da lógica individual da agilidade, a tomada do “corredor” pelos motociclistas subtraiu dos demais condutores e dos pedestres a segurança de circulação na cidade. Foi no impacto com a motocicleta que 35% dos ocupantes de veículos, supostamente muito protegidos pela carroceria de aço, perderam a vida em 2008 na cidade de São Paulo. A situação dos vulneráveis pedestres, é claro, não poderia ser melhor: quase 25% dos pedestres morreram em acidentes envolvendo motocicletas.

A defesa corporativista do “corredor”, no entanto, ignora essa realidade e diz que o problema são os outros: é o motorista que não respeita nada, é o pedestre desorientado, o folgado do ciclista. O motociclista não passa de uma grande vítima da irresponsabilidade dos outros!

A distorção interessada das coisas é o ofício de todo bom lobista e o argumento final dessa armadilha é a retória do “extremo perigo” de obrigar a motocicleta a tomar sua posição na via, atrás dos carros. Não é incrível que ficar atrás de um carro seja tão “extremamente perigoso” no Brasil, enquanto é a regra de circulação em todo o resto do mundo? Como é que outras sociedades conseguem fazer essa “mágica” de colocar as motocicletas atrás dos veículos e garantir aos motociclistas campo de visão e espaço para frenagem sem matarem todos eles?

O que nem o Presidente da ABRAM nem os representantes da bancada do “corredor” querem perceber é que o mundo não gira em torno da segurança do motociclista. Em cima de duas rodas há uma vida; fora delas, há muitas mais.

O Plenário da Câmara dos Deputados pode decidir, no entanto, que os interesses particulares dos motociclistas sobrepõem-se à preservação da segurança coletiva no trânsito. Na oportunidade, quem sabe, poderemos finalmente descobrir se a motocicleta é ou não é um veículo.

Qual é sua opinião? Devemos criar um código especial de regras de circulação e conduta para a motocicleta ou obrigá-la a ocupar a mesma posição dos demais veículos na via? Devemos referendar o “corredor”, em favor dos interesses particulares dos motociclistas, ou legislar pela segurança coletiva de todos os demais usuários, motoristas e pedestres?