quinta-feira, 31 de maio de 2012

As ciclovias são um bem necessário

Agora que o Correio Braziliense já vendeu o que podia da edição de hoje, segue a íntegra de um lúcido artigo publicado na versão impressa e disponível na internet apenas para assinantes. Para quem não mora em Brasília, cabe explicar (embora o texto já deixe isso evidente) que há duras batalhas sendo travadas, inclusive no Ministério Público, para que o programa de implantação de ciclovias no Distrito Federal tenha continuidade. Quem questiona, pasmem, é um conjunto de cicloativistas que, na minha opinião, se recusam a enxergar que as ciclovias não são para eles - são para quem não se sente seguro para pedalar.

As ciclovias são um bem necessário

MAURÍCIO MACHADO GONÇALVES
Engenheiro pela UnB, pós-graduado em engenharia e controle da poluição ambiental (USP), ciclista, membro do grupo Coroas do Cerrado, ex-presidente da ONG Rodas da Paz

WILSON TEIXEIRA SOARES
Jornalista, ciclista, membro do grupo Coroas do Cerrado, ex-conselheiro da ONG Rodas da Paz


A ignorância nunca foi útil a ninguém. A frase, famosa desde o século 19, ajusta-se como luva feita sob medida às demonstrações de insensibilidade manifestadas por alguns porta-vozes da desconstrução do trabalho realizado pela ONG Rodas da Paz em favor da implantação de uma malha cicloviária no Distrito Federal. Para tentar reverter a decisão do Governo do Distrito Federal de construir ciclovias, segmentos minoritários de cicloativistas agarraram-se à tese de que o espaço público, por ser bem comum a todos, não deveria comportar áreas reservadas para quem pedala, na medida em que isso implica segregação.

Na cruzada insensata, optaram por fingir desconhecer conclusões acadêmicas consolidadas, como as expostas por Giselle Xavier na elucidativa tese de doutorado "O desenvolvimento e a inserção da bicicleta na política de mobilidade urbana brasileira", a respeito da influência do desenho urbano, do tipo de ocupação do solo e da presença da infraestrutura adequada ou não - de um sistema cicloviário, enfim - sobre o que leva pessoas a se deslocarem a pé ou de bicicleta.

Sistemas cicloviários são espaços formadores de redes - ciclovias, ciclofaixas, faixas compartilhadas, acostamentos sinalizados - que oferecem maior segurança para a circulação em bicicleta. O que inclui, ainda, estacionamentos, integração com os transportes coletivos, tratamento das interseções e redução da velocidade do tráfego motorizado.

Cidades como Berlim, Nova York e Amsterdã, que implantaram, respectivamente, 625km, 482km e 400km de ciclovias, e que adotaram intervenções abrangentes, voltadas para a diversidade social, experimentaram um grande aumento no número de viagens por bicicleta. Ratificando, assim, artigo acadêmico de autoria de Roy Shephard, com foco na importância da mobilidade urbana por bicicleta.

De acordo com as conclusões do artigo, transcrito na tese de Xavier, a realização de alterações substanciais no ambiente construído é imprescindível para que a bicicleta se torne opção de mobilidade urbana. Shepard, em "É o uso da bicicleta como forma de mobilidade urbana a resposta para a saúde da população?", evidencia o quanto é saudável andar de bicicleta dos pontos de vista individual, coletivo e público.

Para assegurar, contudo, os benefícios que o hábito de pedalar proporciona, é necessário realizar mudanças no desenho urbano, na medida em que a percepção de risco resultante do volume, velocidade e composição do tráfego motorizado desestimula a intenção de optar pela bicicleta como meio de transporte regular.

Em ambientes urbanos nascidos sob o signo do rodoviarismo, como é o caso de Brasília, é evidente, até mesmo para os de visão estrábica, que a chave do sucesso para uso da bicicleta está na oferta de segurança, consistência na relação origens-destinos, rotas diretas, atratibilidade e conforto.

Além disso, de acordo com as políticas coordenadas pró-bicicleta empregadas na Holanda, Alemanha e Dinamarca, é necessário, nos sistemas abrangentes com infraestrutura e instalações segregadas, existir um sistema totalmente integrado, com ciclovias, ciclofaixas e vias exclusivas para as bicicletas a fim de promover maior igualdade no uso do espaço público.

Ambicionar um ambiente urbano em que os mais diversos modais de transporte, público e privado, coexistam pacificamente é desejo comum a todos os que cultivam a convicção de que as vias públicas não são, em hipótese alguma, propriedade privada dos veículos automotores.

Para que essa utopia, no entanto, se transforme em bem tangível, é fundamental oferecer à sociedade um conjunto de políticas coordenadas que contemple, entre outras providências, espaços exclusivos para ônibus, para bicicletas, vias deliberadamente estreitas para forçar a redução da velocidade dos automotores e sobretaxar - por que não? -a compra, posse e utilização do carro, especialmente no que se refere ao combustível derivado do petróleo.

Filósofos de esquina e de mesa de bar costumam dizer, não sem razão, que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. No caso da convivência entre motoristas e ciclistas, é fundamental oferecer, a estes, áreas seguras, independentemente do direito que têm de trafegar em qualquer via pública. Bater-se pela não construção de ciclovias, na realidade, constitui, apenas e tão somente, atestado público de ignorância. O que não é útil a ninguém.

sábado, 26 de maio de 2012

Presente de grego

Muito bom o artigo do Prof. David Duarte Lima publicado na edição de ontem do Correio Braziliense. É uma pena que tenha ficado restrito aos assinantes. Como agora o Correio já vendeu tudo o que podia, e deve estar começando a colher as sobras nas bancas, reproduzo aqui o texto na íntegra:

Presente de grego

"Carro fica 10% mais barato a partir de hoje." A notícia parece boa, mas é na verdade um presente de grego. Incapaz de dar solução sustentável para os problemas da mobilidade urbana, o governo federal aposta na pior das opções: o carro. O sistema de transporte - esse monumento à negligência com a população -, é deficiente em todas as cidades brasileiras e precário na maioria delas. Faltam ao sistema pontualidade, segurança, conforto, frequência, acessibilidade, tarifa justa e competitiva com os outros modos de transporte. Corolário: todos querem fugir dos ônibus, que seja para um carrinho velho, caindo aos pedaços, ou uma motocicleta, mesmo que isso signifique riscos no trânsito.

Com a redução de impostos e o aumento da oferta de crédito, o governo dá mais um empurrão para a solução individual de transporte nesse %u201Csalve-se quem puder%u201D. Errou em cheio. Primeiro, porque dá um tiro no próprio pé. Abrirá mão de uma soma considerável de impostos %u2014 segundo apurou o Correio Braziliense, algo da ordem de R$ 2,7 bilhões. Obviamente, as áreas de saúde, educação e segurança, que não andam bem, poderiam se beneficiar com esses recursos. Segundo, porque impõe à sociedade um aumento de custos sociais, econômicos e ambientais decorrentes da mobilidade que poderiam ser evitados.

Os itens da fatura virão em forma de poluição, congestionamentos, desastres de trânsito e a consequente conta no hospital, demanda por mais viadutos, estacionamentos, sinalização, alargamento de ruas e avenidas. As já escassas áreas verdes terão de dar passagem aos novos carros, senhores do espaço público. Os pedestres ficarão ainda mais espremidos nas calçadas, e para atravessar uma rua terão de enfrentar uma frota de veículos mais densa, mais compacta e ainda mais agressiva.

Em terceiro lugar, quem vai pagar pelo equívoco do governo será a %u201Cnova classe média%u201D. Parece que ela será a vítima preferencial, que, por ter o privilégio de escapar dos ônibus superlotados, inseguros, caros e sem pontualidade, trocará o aperto da viagem pelo aperto financeiro. O carro custará o financiamento do banco, o IPVA, o seguro obrigatório, a gasolina, a troca de óleo, as manutenções. Breve, o novo cidadão motorizado descobrirá que excedeu a velocidade em algum momento ou estacionou em local proibido. O valor da multa será uma punhalada no orçamento familiar. Silenciosamente, os pneus custam cerca de três míseros centavos por quilômetro, mas chegará o dia de pagar a conta. E acumulada.

Nesse momento, ele entenderá o que significa depreciação: o valor do seu carro não é mais o mesmo; e a diferença, deverá contabilizar como prejuízo. Como a sua excelência o automóvel não aceita dormir na rua, reivindicará o maior quarto da casa, e com um nome especial: garagem. Provavelmente, esse brasileiro ainda não fez as contas, mas gastará cerca de R$ 1 mil por mês com a mobilidade, cinco vezes mais que antes. Ou seja, o governo, que deveria investir em transporte público para a população, transferiu a conta para o bolso do cidadão.

Por ser um veículo não poluente, barato, eficiente, que não ameaça os outros e ainda melhora a saúde de quem o utiliza, dos R$ 18 bilhões que serão liberados pelo BNDES para a %u201Cmobilidade%u201D, a bicicleta receberá um gigantesco nada. Ao lado dos pedestres, os ciclistas continuarão acuados em um espaço cada vez mais exíguo. Quem anda a pé, de bicicleta ou transporte público no Brasil não merece investimentos, consideração nem respeito.

Em resumo, as novas medidas de incentivo à compra de carros representam perdas para o governo, para a sociedade e para o cidadão. Porém, sabemos todos, onde há perdedores, há ganhadores. As montadoras que venderão os carros estão felizes e os bancos que farão os financiamentos, mais ainda. E torcem para a deterioração do já precário sistema de transporte público. É a turma do quanto pior, melhor. Agora com patrocínio governamental.