quinta-feira, 7 de abril de 2011

Carros não têm direito à privacidade

As placas nos veículos são obrigatórias. A lei não autoriza a circulação de veículos sem elas. Em outras palavras, todo mundo que assume usar um veículo automotor é obrigado a manter visível a identificação do mesmo. Portanto, a imagem do veículo é sempre pública. Ou seja, a única maneira de não ser identificado cometendo irregularidades é não cometê-las.

Digo isso a propósito da mensagem que recebi hoje do amigo Uirá Lourenço, que reproduzo abaixo.


Trânsito – direito à vida x direito de imagem
7/4/2011 – Uirá Lourenço

Todo dia, saio de manhã de bicicleta para o trabalho. Passo pela EPTG (“Linha Verde”), via que passou por mega-ampliação, com direito a túneis e viadutos exclusivos para carros. Apesar da fartura de espaço para os carros, muitos motoristas invadem a faixa de ônibus inoperante e o acostamento. O acostamento é, em tese, o local mais seguro para pedestres e ciclistas, afinal na via não existem calçadas nem ciclovias.
Sempre vejo colisões, ônibus quebrados e várias infrações de motoristas. Conversões proibidas, excesso de velocidade e invasão do acostamento. Muitas vezes, fotografo e filmo os apressadinhos e divulgo na internet e aos órgãos de trânsito responsáveis pela fiscalização.

Hoje cedo, saía do meu prédio, quando uma motorista (moradora do mesmo prédio) me chamou. O diálogo foi assim:

Ela, motorista (M): Acho que você tirou foto do meu carro ontem.
Eu, ciclista (C): Como? [surpreso]
M: É, você não estava de bicicleta na EPTG de manhã?
C: Sim, devia estar. Passo de bicicleta por lá.
M: Eu estava no acostamento e vi que você estava tirando foto. Deve ter fotografado meu carro.
C: Ahh.. você estava trafegando pelo acostamento?
M: Sim.
C: E você acha isso certo?
M: [silêncio]
C: Você sabe que é errado, que põe a vida das pessoas em risco?
M: [silêncio]
M: Mas eu tenho direito à minha privacidade. Não acho legal tirar foto assim.
C: E o direito à vida? Você achou certo pôr minha vida em risco?
M: Eu estava longe de você.
C: Mas poderia passar alguém a pé ou de bicicleta e você não perceber.
C: Você deveria pensar que poderia ser seu filho ou um parente seu na bicicleta e ter mais consideração. Você deveria ter mais respeito e não ficar arriscando a vida dos outros.
M: Também sou atleta. [querendo tirar o tom pesado da conversa]
C: Eu não sou atleta, uso a bicicleta como meio de transporte. É meu veículo.

Enquanto conversava comigo, o filho dela, de uns 7 anos, estava no banco de trás ouvindo, sem o cinto de segurança. Possivelmente, ele estava no carro ontem, enquanto a mãe trafegava pelo acostamento.
O motorista que atropelou vários ciclistas em Porto Alegre também estava com o filho no carro.
Fico pensando no exemplo de conduta que esses pais passam aos filhos. Será que formam cidadãos preocupados com a coletividade ou jovens preocupados apenas com o próprio umbigo, que não se importam em cometer uma infração gravíssima para evitar um congestionamento?
Vale lembrar o que dispõe o código de trânsito:

Art. 193. Transitar com o veículo em calçadas, passeios, passarelas, ciclovias, ciclofaixas, ilhas, refúgios, ajardinamentos, canteiros centrais e divisores de pista de rolamento, acostamentos, marcas de canalização, gramados e jardins públicos:
            Infração - gravíssima;
            Penalidade - multa (três vezes).

Será que o direito à privacidade (na verdade, a imagem do carro e não da pessoa) vale mais que o direito da pessoa de andar ou pedalar em relativa segurança?

Aliás, o direito dos pedestres e ciclistas de passar pela via já foi desrespeitado pelo próprio governo, de forma escancarada, ao não construir locais apropriados de circulação – calçadas e ciclovias.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Em defesa da tarifa zero, direito social ao transporte público urbano

Este excelente texto, fundamental, foi publicado originalmente no portal TarifaZero.org.

Em defesa da tarifa zero, direito social ao transporte público urbano
por Gert Schinke
A bandeira da tarifa zero, gratuidade do transporte público coletivo urbano, deve ser vista como uma conquista social da maior envergadura, colocada no mesmo patamar dos demais “direitos sociais” garantidos na Constituição Federal. Não é pouca coisa. Em certa medida, uma “utopia”, no bom sentido do termo, dada a sua envergadura, alcance e dimensão social. Tão pouco é novidade, pois até mesmo praticada em outros rincões mundo afora, e no Brasil também, ainda que limitadamente ao final dos anos 1980, no governo Erundina na Prefeitura de São Paulo. O paralelo com o sistema SUS é procedente no que diz respeito à universalização e gratuidade a toda população, embora ressalvando as deficiências e limitações que o sistema apresenta e se aprofundam dia a dia no conturbado meio urbano, carente de bom planejamento e boa gestão da coisa pública – corrupção, tráfico de influência, falta de transparência e participação. Também na educação fundamental, que deveria ser totalmente gratuita para a criançada, mas que, por motivos óbvios não é, também poderia se traçar esse paralelo. Lembro que já há uma articulação em marcha para apresentar uma PEC – Projeto de Emenda Constitucional, no Congresso, para aprovar a inserção do “transporte público urbano”, como “direito social”, coisa que a Constituição de 88 não assegurou ao lado das demais conquistas sociais. Mais adiante é possível compreender melhor porque isso não aconteceu naquela época.
10 – No contexto do capitalismo selvavem
A proposta da tarifa zero no transporte público coletivo urbano arranca uma conquista social do capitalismo, selvagem como o conhecemos na exploração do trabalho, da natureza, de qualquer coisa inerte e viva sobre a face da terra. Ela é, portanto, uma proposta de caráter socializante, que colocará à disposição de todas as pessoas o direito de ir e vir, no contexto da mobilidade social, coisa que hoje está longe do alcance da grande maioria das pessoas em nossa sociedade. Não é, todavia, uma proposta de cunhosocialista, modo de produção e regime que está no horizonte, quiçá longínquo, e que implica na superação do capitalismo enquanto modo de produção e sistema de dominação político-cultural. É bastante óbvio supor que num sistema socialista haverá transporte público gratuito, entre outras gratuidades a toda população, na “vida sem catracas”, coisas que o capitalismo não pode oferecer, e não as consuma sequer nos chamados países ditos “ricos”. Quem imagina, portanto, que apenas num regime socialista poderá haver tarifa zero se engana – ela está totalmente ao alcance num país de duro capitalismo selvagem como o nosso. O que a fará existir, de fato, é o resultado do cabo de forças políticas que arrancará do sistema mais essa conquista social, assim como o foi a gratuidade da educação fundamental e o SUS na saúde pública.
9 – Um cabo de guerra permanente
Lutar por um “não aumento da tarifa”, ou por qualquer “menor aumento”, é um cabo de guerra no contexto do capitalismo que extorque, sob o regime de concessão, um sobre-lucro da população. A operação por parte das empresas transportadoras conta, normalmente, com o total apoio do poder público, ator fundamental no cenário e que age com evidente cumplicidade orgânica e política com as mesmas. O cabo de guerra é permanente e sempre necessário para evitar ainda maior exploração da população, mas não altera, contudo, o modo de operação do sistema de transporte. Tampouco aponta para a universalização do mesmo. Entre muitos outros exemplos desses “cabos de guerra”, lembro a intervenção no sistema de transporte público levado a cabo na administração da Frente Popular em Porto Alegre, no início de 1989, em função na negativa dos empresários em manter as tarifas congeladas, razão pela qual promoveram um lock-out no transporte, fator que “obrigou” a intervenção nas empresas. Esse cabo de guerra foi vencido depois de três dias de absoluto caos na cidade, muita tensão e disputa na opinião pública, manutenção das tarifas originais e a retomada dos serviços por parte das empresas privadas de ônibus. À época eu exercia a vereança na bancada da Frente Popular, me envolvi diretamente nas ações de resistência popular e defendi a intervenção do poder público nas empresas privadas com toda energia. Mas o sistema não mudou em sua estrutura, apenas melhorou em alguns itens ao longo dos anos que se seguiram. As melhorias são sempre bem vindas, mas o povo continua pagando tarifa individual para cada viagem que realiza, assim como em todo lugar no Brasil.
8 – Condicionamentos culturais realimentados
Por que você acha normal que deva haver postos de saúde, hospitais e equipes médicas multidisciplinares de plantão 24 horas por dia? E tudo gratuito? E porque você acha normal que o transporte público coletivo seja cobrado individualmente a cada viagem e não seja “de graça”, como é o atendimento do SUS? O seu direito de ir e vir, de desfrutar da cidade, não é equivalente em valor do seu direito à saúde, à educação, entre outros serviços prestados pelo Estado? Embora seus direitos sejam “individuais”, o serviço não o é – ele é coletivo, fator que estabelece as rotas, os horários, os equipamentos e todas as regras para que ele funcione dignamente com esse propósito – atender coletivamente a sociedade. Prega a cultura hegemônica que o ônibus deveria chegar à porta de sua casa de minuto a minuto, coisa totalmente ilógica, irreal e com o único propósito de denegrir a imagem do transporte coletivo. É um argumento claramente falacioso, fartamente utilizado pela indústria automobilística na promoção do “império do transporte individual”, motivo pelo qual vende o carro, a motocicleta. Esse “modo individual”, ainda que cada vez mais limitado em função dos seus custos ecológicos e sociais, pode chegar à porta da sua casa e ser utilizado no minuto em que você o desejar, trazendo-lhe a sensação da virtual “disponibilidade permanente”, prazer e outros sentimentos a ele associados. A indústria automobilística já há muito tempo luta justamente contra o fantasma das severas limitações impostas à circulação de automóveis nas grandes cidades e, em função desse parâmetro, miniaturiza os modelos, constrói sob condições cada vez mais econômicas, pois disputa ferozmente a população “no mercado da mobilidade”, especialmente diante dos sistemas de transporte coletivos, seja prestados pelo Estado, sejam prestados por empresas privadas. O transporte coletivo, portanto, compreende regras socialmente negociadas, padronização, constância, fiscalização governamental e dos usuários, entre outros quesitos, que lhe empresta a credibilidade enquanto alternativa de qualidade no “ir e vir”. São dois sistemas que partem de pressupostos e motivações completamente distintas. Quando o equilíbrio entre os diversos modais de transporte é quebrado, fazendo a equação pender para o lado do transporte individual de passageiros, surgem os inexoráveis congestionamentos de trânsito e conseqüente poluição atmosférica – chaga das metrópoles em todo mundo.
7 – A sedutora propaganda do carro
A indústria automobilística incrementou como nunca suas estratégias para seduzir as pessoas nas últimas décadas. Esse “objeto de desejo” está no plano do amor. Nesse jogo do vale tudo, usa o apelo sexual, aventureiro, nobre, despojado, esportivo, e todo um imenso leque de parâmetros idiossincráticos e culturais para que a pessoa se sinta na “obrigação moral” de comprar um automóvel, sem o qual ela não será bem vista na “sociedade do automóvel”. Já quanto ao modelo, é óbvio que ele terá que se adequar ao poder de compra do consumidor, razão pela qual se produzem carros para pobres assim como para bilionários. Faz sentido produzir, em época de economia de energia e de materiais, automóveis seriados com motores de 1000 cavalos de potência? Alguns destes custando vários milhões? Antes de dar algum lucro, acima de tudo eles são ícones de marcas, de poder, de status, da indústria e de quem os compra. A “Fórmula 1” é produto direto dessa macabra estratégia que confunde esporte com tecnologia. Ainda se vale do “greenwash” – maquiagem verde, trabalhando o apelo ecológico nos automóveis, de forma a torná-los “mais verdes” – hoje quase virtualmente recicláveis, “ambientalmente corretos”. E isso seduz milhões de pessoas que consomem e surfam na “onda verde tecnológica” em todos os setores. Toda a ampla cultura que gira em torno do automóvel, desde os brinquedos de criança, passando pelos clubes de marcas, corridas, exposições, concursos, e todo tipo de iniciativas associadas, emprestam à nossa sociedade industrial moderna uma marca única na história recente, com traço totalmente distinto se comparada às nações indígenas ou a povos que ainda resistem bravamente à sanha da indústria automotiva e os setores a ela associados. O complexo “das auto” vale-se de uma miríade de milionárias e sofisticadas pesquisas de opinião (market share) para aprimorar e lançar novos produtos, ao mesmo tempo que consolida valores culturais na contramarcha da igualdade e respeito de gêneros, das culturas locais, de estilos de vida anti-consumistas e frugais. Como é possível, em pleno século XXI, num mundo que clama por igualdade entre gêneros, na era dos “direitos humanos”, ver tanta exploração sexual da mulher, figura onipresente nas feiras automotivas de toda ordem, banalizada e usada como adorno nos produtos ali expostos? Isso é tido como “normal”, “aceitável”, “tolerável” em nossa sociedade machista. Desde o “calendário da Pirelli”, onipresente nas borracharias, até o honorável presente dos pais aos filhos que passaram em algum vestibular, deificam o automóvel. A estratégia de expansão e sobrevivência da indústria automotiva, calcada no binômio marketing e mídia, atua como um dos mais eficientes atores do “soft power”, estratégia política que prioriza a cultura e o estilo de vida como forma de dominação e controle político sobre a população. Quem ama automóvel, adora o capitalismo, o sistema que lhe deu “vida”. Se você é um autêntico anti-capitalista, vá de ônibus, a pé ou de bike. Automóvel é o maior ícone do capitalismo.
6 – Subsídios diretos e indiretos para o sistema carro
Colocando o automóvel em sua cadeia produtiva se tem a real dimensão do seu “poder” dentro da nossa sociedade de consumo moderna. Aço, plástico, borracha, madeira, fibras, óleo, petróleo. Muito petróleo. Para extrair, elaborar e distribuir tudo isso, antes mesmo de se ter um automóvel, energia. Muita energia. O peso do modal automóvel no sistema produtivo capitalista é enorme, fator do seu rápido desenvolvimento e recuperação no pós-guerra, assim como fator de aceleração da globalização nas décadas recentes. Cabe lembrar que a dependência energética ao petróleo aprofundou-se na medida em que a indústria automobilística cresceu e tomou o planeta. Os países árabes e os demais grandes produtores de petróleo estão umbilicalmente enredados com o sistema econômico global, pano de fundo para um complicado cenário político dominado por longevas ditaduras de todo tipo e perfil, invariavelmente ligadas às grandes petroleiras. Não é possível dissociar a indústria automotiva do capitalismo selvagem e global como o conhecemos hoje – impregnado de tecnologia, poluído, mortífero. Nas grandes cidades, seu peso é ainda mais sentido, na forma da ocupação dos espaços urbanos, competindo com demandas sociais por espaços de lazer, cultura, esporte e toda uma série de atividades necessárias a uma boa qualidade de vida no meio urbano. No Brasil, porém, o modal rodoviário superou a maioria dos países mundo afora na deformação de sua matriz de transporte. Na cena brasileira conquistou absoluta hegemonia diante dos modais ferroviário e aquaviário, que, em comparação a outros países, superam-no largamente em volumes transportados. Aqui o processo cunhou de “rodoviarista” a diretriz que efetivou o predomínio do caminhão e do automóvel sobre o trem e o navio. De outra parte, os subsídios diretos e indiretos ao modal automóvel são imensos, e por vezes maquiados, para que possam ser absorvidos politicamente pela sociedade. Na vasta indústria metal-mecânica, química e siderúrgica, base do insumo para a indústria automobilística, há uma injeção bilionária de aportes por parte dos bancos públicos de fomento econômico – BNDES, BB e CEF, além dos seus similares estaduais e regionais, para ficarmos somente em um exemplo. É um subsídio indireto à indústria automobilística paga por todo povo, embora fruído por uma pequena parcela. Quando se constrói mais um viaduto está se tirando dinheiro de outro lugar, como para uma escola, um centro de saúde, ou outro investimento que, por suas características próprias, atenderá as pessoas diretamente visando seu crescimento enquanto cidadãos – desenvolvimento humano, ao passo que o viaduto normalmente só propicia maior velocidade de tráfego. No contexto das “isenções fiscais” ocorrem verdadeiras aberrações do ponto de vista das prioridades de investimentos públicos, forma de injeção direta de dinheiro público no lucro das montadoras, quando, por exemplo, se abre mão de décadas de impostos, como soe acontecer em todos os cantos do Brasil, a título de criação de empregos. A roda do complexo “das auto” gira mais acelerada, produz mais traquitanas, requer mais estradas e viadutos, clama por mais energia, processo visivelmente insustentável. Logo no início da revolução sandinista na Nicarágua, a administração municipal da capital Manágua adotou uma espécie de “colaboração espontânea” de tarifa de ônibus, suspendendo as tarifas normais até então praticadas no sistema privado da “era Somoza”, política que tinha como principal objetivo o estímulo ao uso do ônibus por parte da população, para garantir que a roda da combalida economia girasse. Ao mesmo tempo, garantia combustível ao sistema público mediante total subsídio, uma vez que faltava combustível ao país – todo importado à época. Lá, num país muito mais pobre do que o Brasil, o sistema de transporte público funcionava efetivamente como se estivesse vigindo uma espécie de tarifa zero, embora não com esse nome. E o modo de produção naquela pobre Nicarágua estava longe de ser algo parecido com o socialismo.
5 – O implacável e eficiente lobby da indústria automotiva
Na disputa pelos investimentos públicos a indústria automotiva se vale de um forte e eficientíssimo lobby político, quase imbatível nos dias atuais, especialmente no Brasil, cuja estrutura político/institucional do Estado é altamente vulnerável a ele; e impregnado pela visão do desenvolvimentismo material vulgar, produto dos padrões culturais impostos pelo estilo de vida consumista reinante nos países “ricos”. No Congresso Nacional, por exemplo, acordos partidários para a ocupação dos cargos nas Comissões Permanentes da Câmara Federal e do Senado, colocam alguns deputados e senadores “chaves”, cujas campanhas eleitorais recebem apoio dos setores empresariais ligados à indústria automotiva e seus associados, como transportadoras, construtoras de obras civis, distribuidoras de veículos, consórcios e seguradoras, dentre muitos outros, no comando de comissões estratégicas, como a Comissão de Viação e Transportes, por exemplo, agora presidida pelo Deputado Rodrigo Garcia (DEM- SP). Toda legislação, todos os investimentos destinados ao setor, regulamentações e outros interesses, passam por esta comissão e tem no deputado um lobista no lugar apropriado para costurá-los entre seus pares. No grande cenário de uma “matriz de dominação política”, a ocupação desses cargos, dentre outros na estrutura do Estado, é de vital importância para o setor. A exemplo de outros setores empresariais, como o do cigarro e de bebidas, por exemplo, assim é feito, funciona muito bem e produz ótimos dividendos aos mesmos. Não por acaso, são os setores que mais resistem ao “financiamento público de campanhas eleitorais”, pois isso lhes tira poder sobre seus candidatos.
4 -  O SUS do transporte coletivo urbano
Da mesma forma como o SUS foi justificado para que fosse criado, propiciando atendimento universal e gratuito a toda população, um sistema de transporte coletivo urbano se justifica pelos mesmos critérios, e, assim como acontece com a saúde, você poderá optar por utilizar ou não utilizar o sistema público gratuito. A clínica privada convive com o SUS e com ele disputa permanentemente a população adoentada. Por isso, trabalha para que o SUS degenere e baixe sua qualidade de atendimento. Quem teria seus interesses contrariados com um sistema de tarifa zero? Certamente as empresas privadas no ramo do transporte de passageiros, a indústria automobilística e todos os seus associados, que, via de regra, hoje se beneficiam com o sistema tal qual o conhecemos – sob o regime de concessão para a exploração da iniciativa privada. É bom lembrar, em complemento ao que já foi colocado anteriormente, que o lobby das empresas de ônibus privadas é um dos mais eficazes articuladores políticos, patrono de incontáveis personagens da vida política e gerador de negócios escusos na sua orgânica e visceral relação com o poder público em suas três esferas administrativas – municipal, estadual e federal. Esse fator, por si só, será um dos maiores entraves para implantar um sistema de tarifa zero, pois o empresariado se aferra ao regime de concessão pública dos serviços, caracterizados por sua longuíssima duração no afã de perpetuar seu rentável negócio. A contratação direta de frotas por parte do poder público dispensaria o regime de concessão atualmente empregado, o que não inviabiliza o negócio do transporte coletivo de passageiros, apenas o reposiciona no mercado. Daí o porquê da necessidade de aprovar a PEC no Artigo 6º da Constituição – dar solidez e status de “direito social” ao transporte público coletivo urbano, e, com isso, fortalecer a injeção direta de recursos públicos no sistema de transporte. De outra parte, se todos poderão usar, quem paga a conta de um sistema que oferece transporte gratuito? Haveria várias formas de se fazer isso: criação de um fundo público específico; destinação orçamentária em detrimento de outras destinações já existentes – invertendo prioridades, entre outras possibilidades. Quanto a prioridades, ao invés de um novo viaduto ou de novo recapeamento asfáltico, por vezes claramente dispensável, recurso para o custeio direto do sistema de transporte público.
3 – O olhar ecológico aponta para a tarifa zero
Há, dentre todos os argumentos a favor da implantação do sistema de tarifa zero, um que ganha cada vez mais força e consistência: o fator “ecológico” dessa medida. Sob o ponto de vista do uso mais racional da energia, incrementar o uso do transporte coletivo nas cidades é claramente mais adequado do que incrementar o uso do automóvel e quaisquer outros tipos de automotores individuais. Fazer com que uma boa fatia dos usuários dos modais individuais migrem para o sistema coletivo fará com que diminuam os enormes e onipresentes congestionamentos no trânsito urbano, dispensará áreas para estacionamentos e, o melhor de tudo, freará a expansão alucinada do sistema viário que não para de crescer e chegar aos mais isolados rincões – fator de inexoravelmente realimentação da expansão urbana. Estamos falando em ofertar um bom transporte público para quem hoje utiliza o individual. Esse fator é ainda mais premente quando numa situação como a que vive Florianópolis, cidade confinada numa ilha oceânica, de espaço limitado, onde a expansão urbana conflita cotidianamente com a natureza que se pretende preservada, seja por via da pressão política, seja por via da legislação ambiental. O processo do Plano Diretor Participativo evidenciou que na atual gestão municipal a política que vigora é a do não-planejamento urbano, ao procrastinar a revisão do Plano Diretor indefinidamente, sem qualquer regime de moratória construtiva, ao tambor de uma farsa participativa, e que consumou ao longo dos últimos anos o mais aviltante processo de especulação imobiliária que a cidade já vivenciou. Administração para os especuladores imobiliários. No caso específico de Florianópolis, de urbe policêntrica, o atual preço da tarifa é alto, tendo em vista vários deslocamentos do usuário do ônibus ao longo do dia, fator que inibe concretamente a fruição da cidade por parte da população de menor renda e penaliza principalmente a juventude desempregada. Se a implantação de um sistema tarifa zero resultar concretamente em aumentar a mobilidade para essa população e, ao mesmo tempo, reduzir o número de viagens de automóveis na cidade, ele já produziu um enorme ganho social e ecológico para fruição de todas as pessoas – ganho de caráter universal, portanto. Por outro lado, o poder público pode incrementar em muito o uso de combustíveis mais apropriados quando ele contrata as frotas, estabelecendo critérios e parâmetros técnicos para os veículos, com vistas à diminuição da poluição atmosférica, fator importante nas grandes cidades e diretamente vinculado aos índices de saúde pública e de desenvolvimento humano. Adentramos na era do biodiesel e dos ônibus elétricos.
2 – Integração de modais é vital
No contexto de políticas de transporte público urbano, é necessário olhar para a integração efetiva dos modais de transporte de passageiros, coisa que patina em nosso país: Casa - bicicleta – ônibus – metrô – a pé – barco – metrô – ônibus – bicicleta – casa, só para ficarmos num mero exemplo prático. A integração de modais de transporte no meio urbano está diretamente relacionada à eficiência de todos os sistemas coletivos e o grau de qualidade dessa integração é fator definidor para o abandono dos mesmos em favor da adesão de meios individuais de locomoção automotores – automóveis e motocicletas. Como é possível explicar que, do ponto de vista dos custos e da comodidade, parece ser mais interessante se locomover na Ilha de Santa Catarina com uma motocicleta do que com o sistema ônibus? E por qual razão não há verbas para implantar redes cicloviárias e bicicletários ao passo que há verbas abundantes para pavimentar rodovias e construir viadutos por todos os lados? Verbas existem, sua aplicação, porém, é resultado de uma disputa política permanente, via de regra pendendo para o lobby rodoviarista - poderoso exército de atores muito bem articulados em todas as esferas da administração pública. Florianópolis é um clássico exemplo onde esse cenário se evidencia.
1 – Dimensão metropolitana na gestão do transporte coletivo
Por fim, é imperioso lembrar a integração dos sistemas de transporte coletivos urbanos na esfera metropolitana, curso no qual também estamos bastante atrasados, aqui e acolá. Os inúmeros aglomerados urbanos dispersos em todo Brasil, com suas populações entre 400 mil a um milhão de habitantes, são próprios para estabelecer sistemas integrados de transporte, a exemplo de outros serviços públicos essenciais, como saneamento básico, por exemplo. Nesse cenário, o regime de tarifa zero também ajuda a consolidar essa dimensão da gestão pública. Diante das verdadeiras aberrações administrativas que vivenciamos hoje, a par da era digital, que produzem tantas deformações e conflitos tarifários, de horários e tudo mais, haveria certamente também um enorme ganho de eficiência e qualidade para a população envolvida nessas imensas regiões conurbadas Brasil afora. Não falta conhecimento para viabilizá-las, falta vontade política. E quando ela falta, tem que trocar os políticos que estão à rédea dos governos. Simples assim.
Por todos os argumentos acima colocados, a par das inúmeras ponderações complementares que o tema ensejará, estou convicto que a implantação da tarifa zero no transporte coletivo urbano de passageiros será um marco em nosso país, uma enorme conquista de caráter social, assim como o foram as demais conquistas arrancadas duramente ao longo das últimas décadas até o presente. Ela não cairá do céu, porém, mas resultará de um embate vigoroso contra o lobby automotivo e seus associados históricos.
Tarifa zero é mais um passo no longo caminho para uma vida sem catracas.
Florianópolis, abril de 2011