sexta-feira, 28 de junho de 2013

A hora e a vez da tarifa zero

(Artigo publicado originalmente na edição de hoje do Correio Braziliense)


PAULO CESAR MARQUES DA SILVA
Professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), doutor em estudos de transportes pela University College London (Inglaterra)

A tarifa zero no transporte coletivo urbano entrou definitivamente na agenda política nacional a partir das manifestações do Movimento Passe Livre. No Distrito Federal, o movimento levou o governo local a se comprometer com a formação de grupo de trabalho específico para estudar a viabilidade da proposta. Sem dúvida, um passo importante. Não tardaram a surgir, porém, na imprensa e na boca de gestores e lideranças políticas e empresariais, os primeiros argumentos contrários. Entre eles destaca-se o alto custo do sistema. Cabe aí a pergunta: alto custo para quem?

Estudiosos têm-se debruçado bastante ao longo dos anos sobre o grande impacto do transporte no orçamento doméstico de moradores de nossas cidades. No outro lado da equação, gestores apressam-se em demonstrar os impactos nos cofres públicos caso os municípios deixem de cobrar dos passageiros os custos das viagens. O Governo do Distrito Federal, por exemplo, estimou em R$ 130 milhões o custo operacional mensal do sistema de transporte por ônibus, uma cifra que impressiona. Como também impressionou o valor de R$ 8 bilhões até 2016 que o prefeito de São Paulo afirmou ser preciso deslocar de outras prioridades para permitir a revogação do aumento de 20 centavos na tarifa local.

Como são apresentados, os cálculos levantam suspeitas de carregarem problemas de método. Com efeito, é de esperar que a tarifa zero resulte em aumento da demanda, assim como também é razoável que se desejem melhorias no transporte público, não apenas que ele seja de uso gratuito no futuro, mas com a (falta de) qualidade dos dias atuais. Se, por um lado, isso significaria que os custos estão subestimados, por outro, o mesmo poderia ser dito dos benefícios a serem proporcionados pela medida. Afinal, quanto seria possível deixar de gastar com a expansão do sistema viário, por exemplo?

Em suma, muita conta ainda precisa ser feita até que se chegue a uma quantificação convincente dos custos. Só não há dúvida de que eles são altos. Mas, então, quem deve pagar por eles? Para responder a essa pergunta, sugiro primeiro identificar quem realmente precisa dos serviços de transporte. Da forma como se constituíram ao longo dos dois últimos séculos, as cidades adquiriram dimensões tais que, no dia a dia, as pessoas precisam se deslocar grandes distâncias e gastar muito tempo nesses deslocamentos. 

As pessoas das camadas menos favorecidas moram longe dos locais de trabalho, de serviços e de lazer, não por opção, mas porque sua renda não lhes permite morar perto, e essa mesma restrição de renda as impede de ter automóvel, ou pelo menos de usá-lo na vida cotidiana. Isso não significa, porém, que as cidades possam prescindir do deslocamento diário dessas pessoas, seja para vender sua força de trabalho, seja para consumir produtos e serviços que mantêm girando a roda da economia.

Ou seja, há algo muito errado no argumento que reduz a mobilidade urbana unicamente à dimensão de direito dos cidadãos. Antes disso, a mobilidade é uma necessidade das cidades. Melhor dizendo, o direito à mobilidade deve, sim, ser assegurado a todos, mas não há por que transferir às pessoas a responsabilidade por comprá-lo.


A solução da contradição passa necessariamente pela revisão dos conceitos. Em primeiro lugar, adotemos o entendimento de que, em vez de enxergá-lo apenas como um meio de assegurar à população de uma cidade o direito à mobilidade, o sistema de transporte público necessita ser tratado como necessidade vital da própria cidade.

Em segundo lugar, e em decorrência desse entendimento, construamos outro modelo de financiamento do sistema, sem onerar os passageiros com os custos de um serviço de cuja existência quem depende não são eles, mas a cidade que criou distâncias impraticáveis. Exatamente porque o custo do sistema é alto, não cabe cobrá-lo da parcela mais pobre da população. Em vez de estudar se a tarifa zero é viável, o Governo do Distrito Federal deveria estudar como viabilizá-la.

Por fim, precisamos refutar imediatamente, antes mesmo que alguém sugira, qualquer restrição da tarifa zero às viagens vinculadas estritamente a atividades como trabalho e estudo. A vida em sociedade não se resume à reprodução e venda da força de trabalho. O pleno exercício da cidadania implica a remoção de todo tipo de barreira ao pleno desfruto da vida independente. A tarifa cobrada do usuário de transporte público é uma dessas barreiras.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Sagrado e profano

Um excelente artigo do Prof. Frederico Holanda, originalmente publicado no Correio Braziliense de hoje:

Sagrado e profano

» FREDERICO DE HOLANDA
Professor titular da Universidade de Brasília (UnB)






Duas visões de cidade frequentemente entram em choque quando se discutem questões urbanísticas em Brasília. Não é diferente com as ciclovias na Esplanada dos Ministérios e as árvores que a sombrearão. Os defensores arguem a melhoria da mobilidade urbana. Os detratores dizem que danificarão a paisagem.

Voltemos um pouquinho no tempo. A Esplanada dos Ministérios tem 300m de largura de empena a empena dos blocos ministeriais. O gramado central entre as 12 faixas de rolamento para veículos motorizados tem 200m de largura. Alguns não sabem que essas não eram as dimensões originais do espaço pensado por Lucio Costa. A distância entre empenas laterais dos ministérios era de 240m (60m a menos) e o gramado central tinha 160m de largura (40m a menos). Portanto, mesmo que as faixas arborizadas sombreando as ciclovias tomem 20 metros de cada lado (e pela observação do canteiro de obras não chegará a isso), apenas resultará a dimensão do gramado central como inicialmente pensado.

Então, qual o problema? Lucio Costa concebeu Brasília como civitas e como urbs — a cidade tem um duplo caráter. Por um lado, é a cidade do poder, dos símbolos, das representações, das cerimônias; por outro, a cidade secular da vida cotidiana dos habitantes. E ele não concebeu a Esplanada como uma “pura” civitas. Alguns também não sabem que há no projeto uma clara indicação de um edifício baixo, conectando os blocos ministeriais entre si, que abrigaria serviços diversos. Nunca foi feito. Noutras palavras, o arquiteto também trazia serviços da vida cotidiana para o coração da civitas.

O problema é outro. É a reação contra qualquer uso menos “simbólico” ou “nobre” para o espaço. Reage-se contra tudo que intensifique o uso cotidiano do lugar, de quaisquer maneiras. Estão sendo mais realistas do que o rei. Esquecem que Lucio Costa tinha por referência afetiva as cidades europeias, continentais ou inglesas. E que, nelas, sagrado e secular, uso cotidiano e excepcional misturam-se para definir alguns dos espaços urbanos mais fortes da história.

Pensem nos monumentais 8km de comprimento e nos “meros” 70m de largura dos Champs Élysés, em Paris. Ou pensem na Praça de São Marcos, em Veneza. Não poderiam ser espaços mais simbólicos e simultaneamente mais prenhes de intensa e animada vida cotidiana. Na América, pensem no Mall de Washington, mais próximo da configuração da Esplanada, cujo gramado central tem 80m de largura; somam-se duas alamedas laterais arborizadas, totalizando 240m de largura entre edifícios — a medida original da Esplanada. No mínimo, é bom considerar esses fatos.

Decerto o projeto das ciclovias podia ser melhor. Por exemplo, por que não implantá-las mordendo uma faixa de rolamento para veículos, em cada direção? Restariam cinco para veículos. Dessas, que tal morder mais uma e implantar os bondes modernos em faixas exclusivas (VLTs) que, por exemplo, valorizam a paisagem de Barcelona, em vez de danificá-la? Seria revertida uma política perversa que desde as origens de nossa querida capital concede todo o privilégio ao carro.

As ciclovias, mesmo não sendo o projeto dos sonhos de alguns de nós, são um avanço. Sinalizam, pelo menos, uma tímida mudança de foco. Valorizar as ciclovias, colocando-as no espaço mais “nobre” da cidade tem uma conotação simbólica a mais: indicam a importância conferida a uma nova forma de mobilidade na qual se investe fortemente mundo afora.

Finalmente, um lugar é tão mais valorizado por seus habitantes quanto mais intensamente ele incorpora-se à vida cotidiana ou aos eventos excepcionais da cidade. Cresce a importância simbólica, além da importância prática. As bicicletas e as árvores que proporcionarão conforto aos pedalantes são uma contribuição. Hoje, a Esplanada é quase exclusivamente o espaço cerimonial da acrópole, não o espaço urbano da ágora. Sim, por seus atributos, será sempre um espaço predominantemente simbólico. Mas as ciclovias e os prédios pensados por Lucio Costa para as laterais do lugar são “temperos urbanos” que só o engrandecerão.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Desafio à morte em 2 rodas

(Matéria originalmente publicada na edição de hoje do Correio Braziliense)

TRÂNSITO »

Desafio à morte em 2 rodas
Motociclistas não respeitam a sinalização, os limites de velocidade nem se intimidam diante dos graves acidentes. Essas são algumas das conclusões da pesquisa feita com 672 profissionais que trabalham na cidade

ADRIANA BERNARDES
Publicação: 10/06/2013 04:00

Werner já sofreu dois acidentes no corredor:
Werner já sofreu dois acidentes no corredor: "Não tem quem não faça"


O semáforo fecha. Um a um, os carros param e formam longas filas. Em questão de segundos, os motociclistas surgem. Usam o espaço estreito entre um veículo e outro. Para ganhar alguns centímetros de asfalto, amontoam-se debaixo do semáforo. A luz mal fica verde e eles arrancam. Hábitos que caracterizam comportamento de risco no trânsito. No Distrito Federal, condutas assim foram constatadas em uma pesquisa com 672 motociclistas. 

De uma lista de 43 comportamentos arriscados, o excesso de velocidade, o corredor e a costura entre os veículos foram admitidos com maior frequência entre os entrevistados. Além disso, ficou provado que quem usa a moto como instrumento de trabalho se arrisca mais. Quanto menor é a renda, mais o motociclista conduz a moto de forma perigosa. O estudo, de autoria de Paulo Victor Hermetério Pinto, resultou em uma dissertação de mestrado em transportes do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília. A tese acaba de ser defendida e prova, cientificamente, a imprudência vista nas ruas. 

O que mais surpreendeu o autor do estudo foi o alto índice de recorrência de comportamentos de risco entre os motofretistas. Segundo o pesquisador, a literatura mostra uma tendência desse grupo de se expor mais ao perigo, e, no DF, não é diferente. “Isso se deve às características da profissão, como a relação direta entre a remuneração e a quantidade de entregas realizadas”, explica. 

Para avaliar a conduta dos motociclistas nas vias, os entrevistados responderam a 43 perguntas sobre a rotina no trânsito. Todas as questões são consideradas arriscadas. As condutas mais relatadas estão ligadas ao desrespeito aos limites de velocidade. E, em alguns casos, como a pergunta sobre o hábito de dirigir alcoolizado, o resultado foi pequeno. Mas, em relação a esse item, Paulo Victor considera haver distorções e supõe: “A pessoa se sente constrangida em admitir”. 

Nas ruas, é fácil comprovar as constatações do estudo. Em apenas 30 minutos, a reportagem presenciou quatro motociclistas avançarem o sinal vermelho do cruzamento da W3 Sul, na altura do Pátio Brasil. Antes de cometer a infração, eles “costuraram” entre os carros parados e trafegaram pelo corredor. 

Rotina
Motociclista profissional há cinco anos, Werner Alves, 25, narra, sem meias palavras, a rotina em cima de duas rodas. “A gente passa em cima da calçada, sobe no meio fio, passa entre os blocos, anda acima da velocidade, não tem jeito. Tem que correr contra o tempo”, assume. Na briga contra o relógio, atropelando as normas seguras de circulação Werner já sofreu dois acidentes, os dois quando fazia “corredor”. Por sorte, saiu sem ferimentos graves. “Não tem ninguém (motociclista) que não faça. Até quem usa a moto só para ir trabalhar”, diz. No último ano, Werner enterrou dois colegas de profissão. “Na hora, dá vontade de parar. Mas, depois, você acaba esquecendo. A profissão é muito perigosa, mas é melhor do que ficar atrás de um balcão. Nas ruas, você está livre, e o salário não é tão ruim”, justifica. 

Na pesquisa, Paulo Victor destaca que os motociclistas têm 34 vezes mais chances de se envolver em acidente do que outro tipo de condutor e, oito vezes mais chance de ter ferimentos graves. Chama a atenção o fato de os estudos americanos revelarem que, em 80% dos casos, os acidentes têm relação direta com o fator humano e não com as condições da via ou adversidade do clima, por exemplo. 

Presidente da Federação Nacional dos Motociclistas Profissionais e do Sindicato dos Motociclistas de Brasília, Reivaldo Alves concorda com o resultado do estudo. Ele diz que a precariedade das relações de trabalho tem relação direta com a imprudência. “Muitos trabalham na informalidade para várias empresas ao mesmo tempo, e são remunerados por serviço feito. Assim, quanto mais entregas fazem, mais ganham. E, aí, acontece todo tipo de coisa”, diz. 

Segundo o sindicalista, cerca de 30 mil pessoas no Distrito Federal atuam como motociclistas profissionais. Desse total, no máximo 2 mil têm carteira assinada. Nesses casos, o piso é de R$ 800. Mas o trabalhador ganha mais R$ 301 pelo aluguel da moto e R$ 12 de vale alimentação por dia, além do seguro de vida. “Somando tudo, dá uns R$ 1,4 mil. Quem não tem carteira assinada, recebe até mais do que isso. No entanto, não tem garantia nenhuma”, pondera. Para Reivaldo, as imprudências serão combatidas com um trabalho sério de educação e de combate à informalidade.
Professor Paulo Victor: quanto menor a renda, mais o motociclista dirige de forma perigosa
Professor Paulo Victor: quanto menor a renda, mais o motociclista dirige de forma perigosa

Motoqueiro   passa ao lado de um acidente com outro profissional. Segundo o estudo , o comportamento de risco é mais comum entre os que usam a 
moto para trabalhar
Motoqueiro passa ao lado de um acidente com outro profissional. Segundo o estudo , o comportamento de risco é mais comum entre os que usam a moto para trabalhar


Hábitos perigosos são recorrentes
No Distrito Federal, os acidentes fatais envolvendo motos representam um terço de todos os casos em que há morte, e os registros estão aumentando em relação às ocorrências com outros tipos de veículos. De 2011 para 2012, houve uma queda de 13% no número de acidentes sem moto, mas foi registrado crescimento de 28% nas ocorrências com moto. Foram 122 mortes, sendo que, 103 vítimas ocupavam a moto. O autor do estudo sobre o comportamento de risco dos motociclista, Paulo Victor Hermetério Pinto diz não ser possível determinar quais são os hábitos mais perigosos. Para isso, seria necessário estudar as condutas envolvidas em acidentes fatais e eleger as mais letais, o que não é objeto do estudo dele. 

O professor Paulo César Marques, orientador da pesquisa, diz que o mais surpreendente do estudo é a confirmação de que o comportamento de risco é mais recorrente entre os que utilizam a moto como instrumento de trabalho. “As relações de trabalho expõem o motofretista a condições inseguras de circulação, e isso é parte do próprio trabalho deles”, diz. Segundo ele, em outras palavras, quando o serviço dos motoboys é contratado, pela empresa ou pelo cliente que quer a pizza quentinha, está embutida a necessidade de exposição a riscos demasiados para que os prazos sejam cumpridos. 

Para Paulo Victor, as constatações da pesquisa podem servir para subsidiar a elaboração e o aprimoramento de políticas públicas. “A partir dos resultados, é possível criar campanhas de prevenção de acidentes relacionados aos hábitos recorrentes e criar diretrizes para a elaboração de cursos de capacitação dos usuários. Também é uma ferramenta útil para orientar a fiscalização de forma mais eficiente”, acredita. 

Paulo César Marques acrescenta que, além das campanhas educativas, é preciso rever a regulamentação dos serviços de motofrete. Ele destaca que, quando a profissão foi regulamentada, o foco ficou apenas na qualificação do motociclista. “Mas as relações de trabalho em si não foram objeto de normatização. Não há responsabilização de quem contrata o motofretista para fazer uma viagem dentro de um intervalo de tempo que, para ser cumprido, necessariamente levará o motociclista a cometer infrações”, detalha. 

Na avaliação de Dirceu Rodrigues Alves Júnior, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), só haverá redução das mortes e lesões entre os motociclistas quando o governo conseguir conscientizá-los sobre os riscos e mudar a cabeça dos usuários. “Também é preciso fiscalizar e punir severamente os infratores, com multas semelhantes às da lei seca (R$ 1,9 mil)”, defende.