terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Paraciclos na UnB

Uma notícia sobre a implantação de paraciclos na UnB gerou uma interessante discussão na lista da ONG Rodas da Paz. O crítico mais incisivo da iniciativa, que defendeu a adoção de medidas restritivas à circulação de automóveis, argumenta que as pessoas que freqüentam a UnB não abrirão mão do uso de seus carros só porque melhoram as condições infraestruturais (já estou tentando me adaptar às novas regras ortográficas) para os ciclistas. Toda a discussão que se seguiu é muito pedagógica, não apenas para quem postou mensagens na lista mas, creio eu, para todo mundo que se dispuser a refletir sobre as políticas de promoção de modos salutares de mobilidade.

Vou acrescentar um pequeno comentário aqui.

A forma convencional de planejar transportes obedece à lógica que já foi batizada de “prever e prover”: contamos as viagens que são realizadas hoje, estimamos a demanda num certo futuro e projetamos os sistemas que deverão atender a essa demanda.

Isso não funciona com o modo Bicicleta. A ausência de condições de trafegabilidade (sejam elas relativas à circulação, ao estacionamento, à segurança, à imagem ou ao que quer que seja) inibe as pessoas a tal ponto que a demanda não se manifesta. Aliás, a opção Bicicleta muitas vezes não aparece nem mesmo quando é induzida por um entrevistador.

Portanto, em se tratando de pedalar, assim como de andar a pé, não cabe “prever e prover”. O que cabe é “promover” ou, para ser mais categórico “prover e promover”.

Os paraciclos na UnB são fruto da mobilização da própria comunidade, com o protagonismo essencial dos estudantes. Também são estudantes os que protagonizam a iniciativa do Bicicleta Livre na UnB. Há professores e técnicos envolvidos nos dois projetos de extensão, assim como em estudos que visam promover a mobilidade sustentável nos e entre os campi da UnB (a atualização do Plano de Circulação, por exemplo). Mas são os estudantes que estão fazendo as coisas acontecerem.

A recém empossada administração da UnB comprometeu-se com projetos como esses (já desde a elaboração do programa da chapa que venceu a eleição em setembro) e isso certamente fará uma importante diferença. Diferença maior, porém, quem faz é a comunidade, quando assume uma idéia como projeto seu e trabalha para torná-la realidade.

Chegará o dia, tenho certeza, em que caberão restrições aos veículos motorizados. Por ora, ficarei satisfeito com a promoção da sustentabilidade e o combate aos abusos, não só como forma de tornar o trânsito mais civilizado na UnB, mas também pelo efeito demonstração que isso pode causar em nossa(s) cidade(s).

domingo, 21 de dezembro de 2008

Mobilidade e crise econômica

Faz tempo que eu não escrevo aqui, resultado do acúmulo de trabalho no fim do ano. Agora que estou de férias, receio que um assunto que eu quis comentar tenha acabado ficando velho. Mas não faz mal: mesmo velho, acho que ainda merece ser abordado, ainda que apenas brevemente, já que muita gente com muito mais bagagem já disse o que de mais importante precisava ser dito. Trata-se do derrame de recursos na indústria automobilística como receita para sair (!?) da atual crise econômica mundial.

Gostei muito de uma postagem no blog Óleo do Diabo. Isso já faz mais de um mês e eu espero que o blog tenha de fato engrossado o coro em defesa do uso da bicicleta. Mas governantes mundo afora continuam achando que a saída passa pelo estímulo à produção de veículos automotores. Desde as notícias comentadas ali naquela postagem, o governo brasileiro já anunciou mais novos benefícios (agora específicos para a produção de motos), os governos americanos (o atual e o próximo) debatem entre si e com o congresso o tamanho do pacote para salvar a GM, a Ford e a Chrysler, o governo canadense aproveitou o impasse e antecipou-se ao vizinho do sul, e assim vamos nós.

A pergunta que fica é: por que produzir carros é tão importante? Já não são suficientes as evidências dos prejuízos que essa forma egoísta e irresponsável (social, econômica e ambientalmente) de locomoção trouxe para nossa auto-proclamada civilização?

A quem ainda não conhece, recomendo a leitura da matéria intitulada "O totem do capital", escrita por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa numa edição de abril de 2007 da revista Carta Capital. Quem também gosta de leituras menos comportadas já deve ter lido o excelente "Apocalipse Motorizado", de Ned Ludd (Conrad Editora). Se você ainda não leu, aí está uma boa dica para papai noel...

terça-feira, 18 de novembro de 2008

A rua e nós (2)



Charge na revista New Yorker, nos anos 70.
(Tradução livre: "Essa cidade está se tornando um inferno! Isto aqui já foi um estacionamento!")

domingo, 16 de novembro de 2008

Crescer sem planejamento leva à dificuldade de locomoção

"Se você cria um modelo que prioriza simplesmente o aumento das vias, você acaba por financiar o transporte individual. Certamente numa cidade como Vitória seria mais positivo pensar em outros modos de circulação, como ônibus e ciclovias. Isso para fazer uma cidade mais urbana e menos arisca à própria vida do cidadão comum. Porque é muito desagradável quando você anda pela cidade e sente que ela é montada não para você andar, mas sim para o seu carro ir de um ponto ao outro. Isso é lamentável pois você perde a própria essência do viver coletivo. O mesmo acontece com o abandono dos centros antigos. Isso tem gerado a ociosidade de uma infra-estrutura pronta, boa e adequada."

É assim que termina a entrevista do arquiteto Valério Medeiros ao jornal A Gazeta, de Vitória (Espírito Santo). Vale a leitura. Erika, obrigado pela dica.

Beth e a Bicicultura

Aconteceu na semana passada (12 a 15 de novembro) aqui em Brasília um importante evento, não só para ciclistas, cicloativistas e estudiosos de assuntos afins: a Bicicultura foi um marco para toda a sociedade. Não vou tentar fazer aqui, de arremedo, o que a Assessoria de Imprensa da Rodas da Paz (valeu, Wilson!) fez de forma tão competente. Prefiro falar um pouco de Beth Davison.

Por muito tempo eu não consegui me aproximar de Beth e Pérsio, creio que porque não saberia o que dizer a eles. Admirava em ambos a força que tiraram da dor e acho que temia me sentir pequeno diante dos dois – talvez, sei lá, porque também tenho um Pedro, 14 anos mais novo que o Pedro deles. (Não foi por isso que deixei de atender a um convite de Pérsio para uma discussão no IPEA – de fato, naquele dia eu tinha aulas que não ia poder repor depois e lamentei muito não ter podido encontrá-lo em circunstâncias que certamente facilitariam a aproximação.)

Passou o tempo e eu os encontrei no dia 19 de junho deste ano, para uma conversa preparatória da Bicicultura. Maurício, presidente da Rodas da Paz, havia me chamado para essa reunião na Padaria Grão Mestre, na Asa Sul, e Beth me ligou para confirmar. Não sabia que era Beth Davison, só soube quando cheguei e encontrei ela e Pérsio. Não me senti pequeno, na verdade a gente cresce na presença deles.

Depois eu encontrei Beth na UnB, trabalhando duramente para construir a atividade concebida por outra batalhadora, a professora Maria Rosa, para marcar a Jornada Na Cidade Sem Meu Carro. Voltei a ter contato com ela agora, mais recentemente, profundamente comprometida com os preparativos finais da Bicicultura, nos quais eu não consegui me envolver como deveria.

Estive no evento apenas na abertura e na tarde/noite da sexta-feira, embora tenha acompanhado via amigos que foram mais assíduos. Mas foi o suficiente para constatar o quanto de Beth havia nele. Nada mais justo do que a homenagem que ela recebeu na cerimônia de encerramento.

Não sei como era Beth antes de 19 de agosto de 2006, mas sei que hoje ela sintetiza como ninguém a bicicultura (aliás, um nome que é outra bela síntese): seu desprendimento, sua dedicação e, acima de tudo, sua solidariedade são contagiantes. O mundo seria outro se nós soubéssemos promover no trânsito os valores que Beth semeia.

Frankenstein

Muito interessante a visão expressa na postagem CMT - O Frankenstein de Arruda, no não menos interessante site A Verdade sobre o Detran-DF. Um trabalho de gente que valoriza o serviço público e a segurança da população. Sugiro que o leitor coloque o endereço entre seus favoritos e visite-o sempre.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Lições do açodamento

As trapalhadas, noticiadas pela imprensa (veja, por exemplo, a matéria do Correio Braziliense na internet), que foram desencadeadas pela entrada em vigor da lei que criou da CMT (Companhia Metropolitana de Trânsito) confirmam o absurdo que foi a tramitação do projeto na Câmara Legislativa em regime de urgência.

Como eu comentei na primeira postagem deste blog, o governador Arruda pediu urgência (e sua maioria parlamentar docilmente aceitou) para um projeto de lei que dormitava esquecido havia meses na Câmara Legislativa, unicamente para impor uma derrota aos servidores do Detran-DF que estavam em greve pela valorização da categoria. Pois bem, a tramitação açodada, sem passar pelas comissões devidas, resultou nisso que vemos agora: um vácuo na fiscalização, que, apesar de ser atividade essencial para a segurança do trânsito, vem sendo sistematicamente desmoralizada por atos e omissões de dirigentes do governo Arruda (com as honrosas exceções de gente como Silvaim Fonseca e Jair Tedeschi).

É preciso agir com urgência para restaurar a autoridade de quem tem a responsabilidade de zelar pela segurança. Mas também é preciso punir severamente quem, trabalhando com outras agendas que não a do interesse público, produz trapalhadas como essa. Isso é assunto para o Ministério Público?

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A rua e nós

Estive ontem no Ato Público em Defesa da Liberdade de Organização e Autonomia Sindical, uma manifestação importantíssima para preservar a independência dos movimentos sociais e das entidades que eles constituem livre e legitimamente. Mas não é isso que eu quero comentar aqui - quero falar do que é o espaço das ruas e de como ele tem sido apropriado.

Costumo lembrar que desde que a humanidade registra sua história aparecem ruas. Segundo esses registros, é pelas ruas que as pessoas (vejam bem, eu disse pessoas) se deslocam, é nas ruas que as pessoas se encontram, que se faz feira, que as crianças brincam, que os adultos protestam. É assim há 10 mil anos. O automóvel, por seu lado, é um jovem de pouco mais de 100 anos. No entanto, não se pode falar em rua hoje em dia se não for para atender aos automóveis. E isso está tão entranhado em nós que parece até natural.

Voltando ao ato de ontem, impressiona a reação de alguns motoristas à presença de manifestantes na rua. O roteiro da curta caminhada (a maior parte do ato aconteceu nos estacionamentos dos ministérios do planejamento e do trabalho), que ocupou apenas duas das seis faixas que o Eixo Monumental tem em cada sentido, não deve ter provocado mais do que 10 ou 15 minutos de acréscimo no tempo de viagem de quem passava por ali. Será tão difícil assim conviver com o povo se manifestando nas ruas da capital da república?

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Fiscais "caros"

Como tenho acompanhado a discussão da CMT com menos intensidade que o Paulo Cesar e o Miura, acabei aproveitando esta distância para me colocar no lugar dos “cidadãos comuns”, ouvindo o que estes têm a dizer. Racionaliza-se da seguinte forma: Precisamos mais fiscalização. Há poucos fiscais. Os fiscais existentes são “caros”. Com a CMT teremos mais fiscais a baixos custos sociais, certo?

Mas se o Sr. subsecretário traz a público (vi isso no DF-TV) que o salário dos Agentes gira em torno R$ 6 a 7 mil – e se isso não é verdade – aí o problema não é apenas complicar ainda mais o “samba do afro-descendente ensandecido”. O nome que se dá a essa estratégia não tem termo politicamente correto que amenize.

domingo, 2 de novembro de 2008

Sobre os salários dos agentes de trânsito

Luís Riogi Miura, ex-diretor do Detran-DF, está aposentado como funcionário de carreira do órgão. Mas nunca deixou de oferecer sua valorosa contribuição à causa do trânsito cidadão e seguro, seja no Distrito Federal, seja nos muitos lugares por onde já passou. Discreto, foi convidado a ser um dos autores deste blog mas preferiu colaborar apenas na forma de comentários. Postou um deles ontem, para o qual eu tomo a liberdade de chamar a atenção do leitor (clique aqui para lê-lo).

O que o comentário de Miura desnuda é a insustentabilidade da proposta da criação da CMT, triste e subservientemente aprovada pela Câmara Legislativa do DF em regime de urgência (portanto sem discussão nas comissões por onde deveria ter tramitado) depois de ter sido mantida por meses e meses longe dos olhos da população. Uso o termo 'insustentabilidade' porque a noção mais aceita, nos dias de hoje e nas mais diversas áreas de conhecimento, para o adjetivo 'sustentável' associa-o àquilo que se faz hoje sem prejudicar as futuras gerações.

Ora, conhecendo a história como nos conta Miura, é óbvio que daqui a alguns anos os fiscais da CMT farão jus a várias das mesmas complementações salariais que os agentes do Detran recebem hoje (e.g. adicionais de periculosidade, de trabalho noturno, horas extras), por causa da similaridade das atividades. É de se esperar também que, a despeito de serem regidos pela CLT, os fiscais também terão penduricalhos criados pelo governo para fazer frente às reivindicações da categoria.

Que ninguém se surpreenda, portanto, se daqui a poucos anos algum governante propuser a criação de uma empresa de fiscalização de trânsito para viabilizar a atividade, porque os cofres do GDF não poderão suportar a contratação de mais marajás para a CMT...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A CMT, a Globo e o Crioulo Doido

Quem assistiu à matéria desta manhã no Bom Dia DF sobre a votação em segundo turno pela Câmara Legislativa da criação da CMT  deve ter lembrado do Crioulo Doido. Misturaram tudo. Liliane Cardoso disse que, para o PT, só a União teria competência para criar o órgão. Renata Feldmann atribuiu ao secretário Fraga a afirmação de que a função de Detran é "normativa". Este, por sua vez, disse que a posição contrária dos agentes do Detran se deve ao desejo que eles têm de usar armas e algemas. E por aí vai...

Ah, o leitor mais jovem pode estar estranhando o uso de uma expressão tão politicamente incorreta no título desta postagem. Tanto quanto estranham minhas turmas sempre que eu uso a expressão em sala de aula. Se esse é seu caso, aí vai (num vídeo de baixa qualidade, é verdade) o Samba do Crioulo Doido, de Stanislaw Ponte Preta, gravado pelo Quarteto em Cy


Drops literários


O Distrito Federal perdeu ontem. A aprovação em segundo turno da criação da CMT pela Câmara Legislativa (ver minha postagem de ontem) foi o início de um retrocesso que nos vai custar muito caro. A menos que vinguem as iniciativas de recurso ao Poder Judiciário, anunciadas ainda ontem no plenário da Câmara.

Mas hoje eu quero falar de outro assunto. Quero oferecer pequenas gotas de literatura que falam do trânsito como nem sempre ouvimos falar.

José Maria Nunes Marques é primo de minha mãe. Ou seja, é meu primo. Durante anos, morando na cidade de Feira de Santana (Bahia), publicou crônicas nos jornais locais, depois reunidas no livro "A Magia do Silêncio". Duas delas chamam a atenção pela percepção que José Maria tinha, já na década de 1970, da cultura do automóvel. Eu não tinha conhecimento delas atá a publicação do livro. Compartilho com os leitores as reflexões contidas em "O pedestre" e "A civilização vista do carro".

O outro texto é uma passagem do livro autobiográfico do historiador britânico Eric J. Hobsbawm. Há muito tempo sou admirador das análises de Hobsbawm sobre os séculos XIX e XX, sobre o futebol e sobre o jazz. A deliciosa descrição do pedalar que fez em seu "Tempos interessantes" só fez aumentar minha admiração minha admiração por ele.

Hobsbawm e a bicicleta

TRECHO DO LIVRO DE MEMÓRIAS DO HISTORIADOR BRITÂNICO ERIC J. HOBSBAWM:

Até mesmo a forma de transporte que nos libertou era barata, pois nós, ou nossos pais, seguimos o conselho dos anúncios na traseira dos ônibus londrinos de dois andares: "Desça desse ônibus. Ele jamais será seu. Compre uma bicicleta por dois pence por dia". Com efeito, com poucas prestações semanais podia-se comprar a bicicleta – no meu caso uma brilhante Rudge-Whitworth, que custava mais ou menos cinco ou seis libras. Se a mobilidade física é condição essencial da liberdade, a bicicleta talvez tenha sido o instrumento singular mais importante, desde Gutenberg, para atingir o que Marx chamou de plena realização das possibilidades de ser humano, e o único sem desvantagens óbvias. Como os ciclistas se deslocam à velocidade das reações humanas e não estão isolados da luz, do ar, dos sons e aromas naturais por trás de pára-brisas de vidro, na década de 30, antes da explosão do tráfego motorizado, não havia melhor maneira de explorar um país de dimensões médias com paisagens tão surpreendentemente variadas e belas. Com a bicicleta, uma tenda, um fogareiro a gás e a novidade da barra de chocolate Mars, explorei com meu primo Ronnie (que a pronunciava "Marr", como se fosse em francês) grande parte das belezas civilizadas do sul da Inglaterra, e, numa memorável excursão de inverno, também as mais selvagens do norte do País de Gales.”

(HOBSBAWM, E. “Tempos interessantes: uma vida no século XX”. ISBN 85-359-0300-3. S.Paulo: Companhia das Letras, 2002. pp. 107-108)

A civilização vista do carro

A CIVILIZAÇÃO VISTA DO CARRO

José Maria Nunes Marques

Há dois preços para a filosofia. Um é pago e expresso em respeitáveis tratados, que os comentaristas engrossam constantemente, num filosofar sem limites. É o preço em grosso e eventualmente, compra a glória, ainda que, não raro, póstuma. No varejo a filosofia tem o mesmo preço que se dá ao “filósofo”, boa vida, desligado ou ligado, e se expressa por aí no coloquial do bate-boa ou nas colunas sagradas da imprensa, especialmente no setor das crônicas. Por muitas que sejam as distinções entre uma e outra forma, por distantes que pareçam estar, é impossível esconder os pontos de ligação entre ambas. Como estamos, acacianamente falando, colocados no contexto da vida, a nossa perspectiva existencial é tão condicionada que não se pode atribuir um valor essencial a ser filósofo em grosso, desprezando a filosofia vendida a retalho. Ninguém discute, é certo, que a vaidade repete indignada tal nivelamento, e enfeita o mundo com a relevância de fatos e coisas, criando a mística irracional, mas reconfortante, dos títulos e dos crachás, que adornam os melhores volumes da variável filosofia humana. Nos entanto nem sempre se pode estar de casaca, donde a sobrevivência das pobres crônicas filosofantes.

A tragédia não está em como ou quando se morre, mas certamente ela reside no fato de que se morre.

Muito sabiamente a vida nos distancia dessas colocações extremas, para que possamos viver, e é por meio desta camuflagem que o mundo continua girando na ficção dos dias, e nos acostumamos às distrações das horas, designando-as por uma variada nomenclatura, da qual emergem sistemas, cujos labirintos nos prendem mesmo nas missas de sétimo dia. Vivemos mal porque só estes desvios de perspectivas nos permitem viver – salvo a hipótese alternativa de Deus.

Dentre as muitas falhas do nosso sistema pessoal de percepção, os defeitos de visão têm lugar destacado. Contava-me um certo amigo um fato ilustrativo das conseqüências desastrosas de não ver ou de ver defeituosamente. Um desses dias maravilhosos de segunda-feira, quando o tráfego de veículos na cidade é um perfeito exemplo de bagunça, formou-se na avenida um engarrafamento. Num dos carros retidos o motorista reclamava e se desesperava quando o seu companheiro lhe disse que devia ter calma, que ele até gostava daquilo, que era sinal de progresso, de crescimento, de civilização. Ledo engano. Não era. Apenas o burro de uma carroça caíra no meio da rua, e enquanto o carroceiro suava para repor de pé o motor de seu veículo, crescia a estrepitosa aglomeração que permitia a nosso vesgo observador tão estranha perspectiva de civilização e cultura.


(Marques, J.M.N. “A Magia do Silêncio: Crônicas”. Organizado por Raymundo Luiz de Oliveira Lopes e Maria da Conceição de Oliveira Lopes. ISBN 85-7395-094-3. Feira de Santana, Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. pp. 181-182)

O pedestre

O PEDESTRE

José Maria Nunes Marques

De toda a estranha fauna urbana a figura do pedestre é a mais lamentável.

Realmente não há o ser pedestre, há mesmo é o estar na condição de pedestre. O automobilista estaciona a sua máquina e, de súbito, ei-lo metamorfoseado, em pedestre, atravessando a rua. O pedestre não se confunde com o homem a pé. No sertão os homens vivem muito a pé, ainda hoje, e nem por isso entram na categoria. É verdade que, mesmo na roça andar a pé não é título, porque quem tem status anda a cavalo. O homem, como ser cultural, resiste a andar por seus próprios meios, desejando sempre estar em cima de alguma coisa, que lhe facilite o ir e vir permanente.

Mas, dizíamos, o sertanejo a pé não se caracteriza como pedestre, tipo que só se entende no contexto automobilístico, sendo, portanto, um produto ou um animal específico das grandes cidades modernas, dominadas completamente pela máquina que se auto move.

O pedestre pode ser definido como um obstáculo no caminho do automóvel. Sendo um obstáculo ele cria a reação no sentido inverso, ou seja, no sentido de sua própria destruição. O automóvel, ao contrário do que imaginam os observadores superficiais, também pensa. Além de tudo aquilo que vem descrito e indicado no “livreto do proprietário”, motor, rodas, carroceria, faróis e tantas outras coisas, o automóvel incorpora ao seu conjunto, – em especial ao seu dinamismo – o homem que o dirige. Este passa a ser uma parte do carro, e a raciocinar como tal. Digamos que o carro usa o cérebro do homem do mesmo modo como o homem usa – (por enquanto) – os computadores. E assim que o automóvel pode tomar consciência do pedestre como alguém que ocupa um lugar no espaço sendo pois um concorrente, um adversário. Há uma questão de “espaço vital” no relacionamento automóvel X pedestre, porque o primeiro tem um insaciável apetite por espaços livres, onde possa expandir a sua personalidade. A psicologia do automóvel é exibicionista. Ela não pode suportar a presença lerda e incômoda do pedestre, inapropriadamente equipado para o locomoção, mas que teima em andar, atravessando ruas e passeios, que por natureza são destinados aos carros (vide os passeios de Salvador e mesmo os de Feira de Santana).

Daí parte o automóvel para a caça ao pedestre.

Podemos definir o pedestre, já agora, como o animal de caça do automóvel.

Não há quem não tenha assistido em filmes àquelas pomposas caçadas à raposa, com centenas de cães, os caçadores a cavalo, vestidos a caráter, vermelho, preto, cinza, com lacaios tocando cornetas e – no enredo- uma dama que cai cujo cavalo dispara. Um passatempo elegante para os caçadores, mas um vexame mortal para a raposa.

A visão dessas caçadas me ocorre freqüentemente nas grandes avenidas, quando os carros, no sinal verde do lacaio mecânico, disparam sobre os pedestres, que fogem como raposas assustadas. Nem todos, porém, conseguem escapar. Não encontram a tempo uma toca, como as raposas, mais espertas. Entram então para as estatísticas, juntamente com os cérebros dos automóveis, e vão servir aos debates dos técnicos e à meditação dos homens, nos raros momentos em que não estão como pedestres nem como componentes do psiquismo do automóvel.

É por toda essa loucura que, às vezes, olhando orgulhosamente a nossa obra, vislumbramos, por entre os fumos poluidores da civilização de consumo, a figura tosca e pré-histórica de um “brucutu” armado de porrete, a golpear a própria cabeça.

Feira de Santana, 1973.

(Marques, J.M.N. “A Magia do Silêncio: Crônicas”. Organizado por Raymundo Luiz de Oliveira Lopes e Maria da Conceição de Oliveira Lopes. ISBN 85-7395-094-3. Feira de Santana, Bahia: Universidade Estadual de Feira de Santana, 2004. pp. 93-94)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

CMT em 2º. turno

Está marcada para esta tarde a votação em segundo turno do projeto de lei que cria a CMT -Companhia Metropolitana (sic) de Trânsito. A propósito, matéria do programa Bom Dia DF, da TV Globo, colocou frente a frente nesta manhã o Subsecretário de Transportes do DF, Délio Cardoso, e o líder do PT na Câmara Legislativa, Cabo Patrício. Em sua linha de argumentação o governo não consegue dar resposta à questão central: como a CMT vai ajudar a aumentar a segurança do trânsito? Sim, porque o governo inventou a CMT dizendo que era para isso...

Para quem não se lembra, a proposta veio no bojo do pacote que o governo anunciou em resposta às cobranças que a sociedade fez depois da ocorrência na Ponte JK que envolveu Paulo César Timponi em outubro de 2007. O jornal Correio Braziliense noticiou assim o pacote no dia 20 daquele mês:


A primeira pergunta que precisa ser feita é: se a CMT era necessária para aumentar a segurança, por que o governo deixou-a dormitando um ano inteiro na Câmara Legislativa e só sacou-a da gaveta agora?

Sinceramente, não creio que os motivos da criação da CMT sejam aqueles alegados pelo governo. Aliás, o discurso de Délio Cardoso na TV hoje de manhã (condenando as multas) tem um fundo demagógico, o mesmo que o fez alardear, no início de sua gestão à frente do Detran em 2007, que o aumento dos limites de velocidade nas vias do DF iria reduzir a saturação nas horas de pico (sobre isso, escrevi um artigo no Correio Braziliense de 18 de maio, que reproduzo abaixo).

Ainda espero que a Câmara Legislativa não se deixe levar por argumentos tortuosos e vote, em benefício da população do Distrito Federal, contra a criação da CMT.


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Artigo publicado no Correio Braziliense de 18/05/2007:

O que se ganha com o aumento das velocidades?
Seria leviano atribuir a morte trágica de mais dois ciclistas atropelados no acostamento do Lago Norte à política de aumentar os limites de velocidade de algumas vias. Mas a circunstância de que a perda das duas vidas aconteceu exatamente no dia em que as placas de 60 foram substituídas pelas de 70 km/h no local nos obriga a refletir seriamente sobre os efeitos desse desatino com que o Detran quer marcar a reedição do programa “Paz no Trânsito”.
Ainda há alguns dias, em debate numa emissora de televisão, tive a oportunidade de ouvir do representante do Detran que as vias sujeitas a aumentos de velocidade não são escolhidas aleatoriamente, mas sim com base em estudos técnicos. O apresentador do programa então pediu detalhes de tais estudos e todos aprendemos que se trata do monitoramento dos índices de acidentes – vias que apresentam altos índices de acidentes não são candidatas à dilatação dos limites de velocidade. Convenhamos, é um critério pouco responsável.<

É o próprio Detran que nos informa que a primeira edição do “Paz no Trânsito” e a implantação da fiscalização eletrônica de velocidade fizeram o número de vítimas fatais do trânsito cair de 610 em 1996 para 465 em 1997. O número de mortos por 100 mil habitantes caiu de 34 para 22 no mesmo período e está hoje um pouco abaixo de 20. Coincidência ou não, as velocidades médias nas vias do Distrito Federal caíram abruptamente, também nesse período, em cerca de 40% e vêm se mantendo estáveis graças à fiscalização eletrônica. Sem dúvida, são resultados alentadores – mas não podemos nos dar por satisfeitos com esses números. Só para termos uma idéia, a meta da Política Nacional de Trânsito é reduzir a 14 o número de mortos por 100 mil habitantes até 2010. Ou seja, se reduzimos em 40% esse índice num período de dez anos, temos só mais três anos e meio para reduzi-lo em outros 30%. De onde vem, então, a idéia esdrúxula de aumentar as velocidades?
O argumento que o Detran vem apresentando à população é da redução dos tempos de viagem. É claro que velocidades mais altas reduzem os tempos de viagem. Mas será que nós temos uma noção razoavelmente precisa do que é essa economia? Façamos uma conta simples. A via L4 Sul tem aproximadamente 10 km de extensão. Percorrendo-a de ponta a ponta no limite de velocidade anterior, de 70 km/h, gastávamos 8 minutos e 34 segundos; com o novo limite, de 80 km/h, gastamos 7 minutos e 30 segundos. Isso mesmo, uma incrível economia de 1 minuto e 4 segundos. Outros exemplos? Nos aproximadamente 3 km da EPJK (entre a DF-001 e a Ponte JK), o aumento de 70 para 80 km/h nos proporciona um ganho de 19 segundos; nos 9 km do Lago Norte (de 60 para 70 km/h), 1 minuto e 17 segundos. E se os 5 km do Eixo Monumental entre a Torre de TV e a Rodoferroviária passarem de 60 para absurdos 80 km/h (costuma-se compará-lo ao Eixão) ganharemos imprescindíveis 1 minuto e 15 segundos. Formidável, não?
O argumento fica ainda mais frágil quando o Detran diz que o objetivo é aumentar a fluidez nos horários de pico. Ora, nesses horários a velocidade não fica limitada pela regulamentação, mas sim pela concentração de veículos (também chamamos isso de densidade, medida em termos da quantidade de veículos por extensão de via). Em outras palavras, é a alta demanda veicular, levando a operação da via para os limites de saturação, que impõe as restrições de velocidade nesses horários. Isso é tão elementar que a insistência do Detran em usar tal argumento deixa no ar a forte sensação de abuso demagógico da boa fé da população.
O mais grave de tudo, entretanto, está nas conseqüências do aumento da velocidade sobre a ocorrência e a severidade dos acidentes. O impacto de um choque ou de um atropelamento depende da energia cinética do corpo (no caso, o veículo) em movimento, ou seja, varia com o quadrado da velocidade. Portanto um aumento de, por exemplo, 17% na velocidade (de 60 para 70 km/h), que significa 14% de redução no tempo de viagem, corresponde a um aumento de 36% de energia cinética, isto é, um choque fica 36% mais grave. Por isso morrem 50% das pessoas atropeladas a 50 km/h, 90% das atropeladas a 70 km/h e praticamente 100% das atropeladas acima de 80 km/h. Além disso, mesmo quando a velocidade alta não é o fator principal de determinado acidente ela pode impedir que o acidente seja evitado. Em condições iguais, um veículo que precisa de 35 metros para parar quando trafega a 60 km/h precisará de 62 metros a 80 km/h e de 96 metros a 100 km/h.
Assim, caros amigos do Detran, vocês prestariam um serviço muito melhor à população do Distrito Federal se divulgassem fatos como esses, que ajudam a desconstruir a nefasta cultura da velocidade, em vez de jogar para a platéia com medidas que não atingirão os objetivos anunciados e comprometerão severamente os esforços de anos para assegurar um trânsito mais humano. Ainda é tempo de recolocar o “Paz no Trânsito” no rumo certo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Um espaço, vários assuntos - hoje, a CMT

Já faz algum tempo que eu tenho vontade de abrir um espaço assim, sem maiores pretensões, para falar de trânsito, naturalmente, mas também de outras coisas. Ainda queria elaborar mais um pouquinho, mas decidi colocar logo o blog no ar para manifestar meu protesto contra a iniciativa do Governo do Distrito Federal (GDF) de desengavetar e da Câmara Legislativa (CLDF) de aprovar o projeto de criação da CMT (Companhia Metropolitana de Trânsito). Principalmente da forma como ambos procederam.
Eu tive oportunidade de discutir as bases (ou a falta delas) da proposta em pelo menos duas oportunidades (numa audiência pública na Câmara Legislativa e num seminário promovido pelo Sindetran) e fiz uma referência crítica também em um artigo (intitulado "O trânsito em Brasília") que foi publicado no portal da UnB e em jornais de grande circulação. Mas a questão que se coloca agora é menos de fundamentos conceituais e mais de oportunismo irresponsável.
Durante a maior parte do ano, o GDF deixou morrer o debate e fingiu que a criação da CMT havia deixado de ser uma prioridade. Tudo isso para trazer de volta o assunto, pedindo urgência à Câmara Legislativa, exatamente quando os funcionários do Detran deflagram uma greve com pauta de campanha salarial. É uma tática semelhante à do ex-governador Roriz, que respondia a manifestações dos rodoviários distribuindo novas permissões a donos de vans.
Lamentável. Esperamos que a irresponsabilidade fique por aí e que os deputados distritais não aprovem o projeto no segundo turno.