sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A Brasília automotiva, o Eixão e outras vias da morte

Este artigo foi publicado originalmente na edição de hoje do Correio Braziliense:

A Brasília automotiva, o Eixão e outras vias da morte

UIRÁ LOURENÇO
Presidente da ONG Rodas da Paz

JONAS BERTUCCI
Diretor-Financeiro da ONG Rodas da Paz



Em pleno século 21, as autoridades de trânsito ainda pensam Brasília da forma rodoviarista vigente na década de 1960. A fluidez motorizada é sempre priorizada em detrimento da segurança no trânsito. Pedestres, usuários de bicicleta e de transporte coletivo sofrem e assistem às inúmeras obras e intervenções voltadas exclusivamente aos automóveis, que incluem duplicações, construção de túneis e viadutos, aumento do limite de velocidade, conversão de acostamento em terceira faixa para carros e estacionamentos subterrâneos.
Na época da construção da cidade, o veículo da vez era o automóvel. Hoje, os modos coletivos e os não motorizados destacam-se como solução para o caos provocado pela megafrota de carros em circulação. Cidades que prezam pela boa qualidade de vida retiram espaço dos carros e criam outros para as pessoas circularem. A redução da velocidade nas vias é uma das medidas que aumentam a segurança de todos e incentivam as pessoas a caminhar e a pedalar.
A EPTG exibe claramente a orientação da política de transporte. Houve ampliação do espaço para os carros, mas não existe calçada nem a ciclovia projetada. Os motoristas se espalham pelas cinco pistas e também pelo acostamento e pelo espaço onde seria o corredor exclusivo de ônibus. Considerando a mobilidade urbana sustentável, é inconcebível uma cidade cortada por rodovias com alto limite de velocidade.
Existem inúmeros locais hostis, não só em razão da falta de calçadas e de caminhos seguros para pedalar, mas principalmente da alta velocidade e da imprudência dos motoristas. Eixão, Eixo Monumental, L4 e Epia são exemplos de atraso na política de transportes.
Recentemente, uma das principais vias voltou ao noticiário. Conhecida como Eixão da Morte, a DF-002 é uma pista de alta velocidade, com passagens sujas e perigosas para a travessia de pedestres, sem qualquer incentivo ao transporte coletivo, sem calçada nem ciclovia. As marcas de freada antes dos radares revelam a imprudência que impera nessa e em outras vias do Distrito Federal.
Os pedestres são as principais vítimas do Eixão, mas as autoridades de trânsito só revelam preocupação quando ocorrem colisões frontais entre motoristas. Nesses momentos, ressurgem propostas paliativas, como a construção de barricadas de concreto, que não resolveriam a questão principal: velocidade elevada. Não aumentaremos a segurança de motoristas e muito menos de pedestres e ciclistas, enquanto não enfrentarmos a selvageria nas pistas. A solução é pensar nas pessoas e não apenas em motores. A capital federal ostenta números vergonhosos de violência no trânsito: todo ano morrem 450 pessoas.
No Eixão, uma medida emergencial seria a redução do limite de velocidade para 50km/h ou 60km/h. Embora isso possa parecer algo impensável para alguns, trata-se de uma possibilidade viável. A redução de 20km na velocidade máxima de qualquer via reduz consideravelmente a possibilidade de acidentes e mortes. “Mas e o tempo perdido?”, muitos bradariam, sem perceber que essa redução teria como consequência um aumento de cerca de três minutos para se percorrer toda a extensão da via. Alguns minutos em troca de maior segurança e diversas vidas salvas.
Outras medidas a serem consideradas envolvem criar faixas exclusivas de ônibus, calçadas, ciclovias e pontos seguros de travessia. Inclusive a instalação de semáforos pode ser considerada. Para completar a humanização, pode-se ampliar o Eixão do Lazer para os sábados.
A redução da velocidade é algo primordial quando se almeja o bom convívio nas ruas. A relação entre velocidade do motorista e morte em casos de atropelamento é clara: a 32km/h, o risco de morte é de 5%; a 64km/h, o risco sobe para 85%. Infelizmente, em plena capital, só se admite aumentar o limite de velocidade em favor da fluidez motorizada.
Sem necessidade de obras, o Distrito Federal pode adotar limites de velocidade condizentes com a vida. Nas supostas rodovias (DFs e BRs), o limite seria reduzido para 50km/h ou 60km/h e nas demais vias para cerca de 40km/h. Nas áreas residenciais, o limite não deve passar de 30km/h. As ruas de Brasília não podem mais ser encaradas como pistas para circulação exclusiva de carros. Temos que encará-las como vias urbanas por onde pode e deve passar qualquer pessoa, independentemente do meio de transporte utilizado. Na década mundial de ações pela segurança no trânsito, iniciativa da Organização das Nações Unidas adotada no Brasil, esse é um dos desafios do Governo do Distrito Federal.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Fim de uma hipocrisia?

A expressão não é minha. Quem a usou foi o Ministro Marco Aurélio Mello, do STF, ao fim do julgamento da (in)constitucionalidade de uma lei distrital*.

O alvo do comentário do ministro foi uma sucessão de normas do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) que há 10 anos - a série começou com a Deliberação 29, de 19 de dezembro de 2001 - vinham mantendo a obrigatoriedade de os órgãos gestores do trânsito informarem aos condutores de veículos, via sinalização, a localização precisa dos equipamentos eletrônicos de fiscalização de velocidade.

Ao que tudo indica, isso deixa de valer amanhã de manhã, quando deverá ser publicada uma nova resolução (deve ter o número 396). Revogando as resoluções 146/2003, 214/ 2006 e 340/2010, o Contran sai em resgate do papel da fiscalização, tão atacada pelo senso comum (com a mídia irresponsável à frente) e tão necessária à segurança de todos nós.

De quebra, a Resolução 396 ainda permitirá a instalação de controladores eletrônicos de velocidade mesmo onde não houver sinalização. Motoristas não vão poder reclamar porque, ao passarem pelo processo de habilitação, devem ter aprendido quais são os limites nacionais de velocidade para cada tipo de via e de veículo.

Comprometer assim o conjunto da sociedade com a boa conduta e o respeito a toda a coletividade é uma alvissareira maneira de encerrar o primeiro ano da Década Mundial de Ações para a Segurança do Trânsito, que de ações mesmo teve muito pouco em nosso país.

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(*) Projeto de autoria do ex-deputado distrital e ex-senador (cassado) Luiz Estêvão.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Frederico Holanda, sobre o Eixão

Artigo excelente, publicado na edição de hoje do Correio Braziliense:


O rei está nu!

Frederico de Holanda 
Arquiteto, professor aposentado da Universidade de Brasília

As mortes no Eixo Rodoviário de Brasília — a via expressa que atravessa a cidade de sul a norte — voltaram às manchetes, o que se repete a cada nova fatalidade. Reinstala-se o debate, fala-se na velocidade dos veículos, em imprudências de motoristas ou pedestres, na precária fiscalização. Alguns reconhecem problemas de urbanismo, mas as soluções aventadas são novas passarelas subterrâneas, melhorias das existentes, muretas de concreto na faixa central etc. São mais do mesmo, não contribuem para melhor qualidade de vida na cidade.

As sugestões são ruins porque pertencem à lógica da “capital rodoviária” (palavras de Lucio Costa): supunha-se que pedestres limitar-se-iam ao espaço interno das superquadras ou de outros setores urbanos. Fora daí, toda prioridade ao fluxo de veículos — idealmente sem cruzamentos. Mas nunca foi assim: para lazer, trabalho ou serviços muitos caminham entre quadras e setores, cruzam vias arteriais urbanas. O percurso mais controverso é o que atravessa o Eixão.

As reações contra mudanças no Eixão esgrimem a preservação dos atributos essenciais do projeto. Mas quais? Parecem ignorar que o projeto de Lucio Costa sofreu mudanças antes mesmo de começar a ser construído. Das mais importantes foi Brasília ter “engordado”: o caráter linear da cidade perdeu força ao acrescentarem-se novas fileiras de quadras paralelas ao Eixo Rodoviário — as 400, 600, 700 e 900 não existiam no projeto. A W3, importante via comercial, idem. As mudanças intensificaram os fluxos transversais de pedestres (na direção leste-oeste) e só agravaram o problema.

Contudo, soluções aventadas até agora não se libertam da lógica rodoviarista. Que tal revertê-la? O Eixão poderia ser uma bela avenida urbana, com sinais de trânsito a permitirem o cruzamento de pedestres na superfície. No lugar da atual faixa central, hoje não utilizada, um canteiro arborizado, gramado, florido, calçado com pedras portuguesas. O fluxo veicular teria velocidade baixada a razoáveis 60 km/hora. Tecnologias como ondas verdes, já implantadas com sucesso em outras avenidas da cidade, otimizariam o fluxo. Ele seria, sim, reduzido, pois os veículos não mais seriam donos exclusivos do pedaço, como reza a cartilha rodoviarista. (À guisa de exercício, contrastem isso com a pavorosa mureta de concreto aventada, a dividir ao meio o espaço lindamente povoado pelos pedestres aos domingos!)

Sim, teríamos um novo atributo urbano, todavia não contraditório com o estatuto do tombamento: sua essência não é o rodoviarismo da cidade, são suas escalas: a gíria local para os quatro tipos essenciais de configuração que organizam a paisagem urbana — monumental, gregária, residencial, bucólica. Em nada o novo Eixo, arborizado e semaforizado, teria reduzida sua força como macroelemento estruturador da imagem urbana. Pelo contrário, sua amigabilidade para com os pedestres fá-lo-ia mais memorável, até mais compatível com a escala residencial em que está inserido. Não sejamos, pois, sectários. Preservar a forte identidade da cidade, suas qualidades essenciais justamente reconhecidas internacionalmente, sim, é fundamental. Não seus problemas, principalmente quando eles envolvem a morte de pessoas.

Não estou sendo original. Nos anos 1990, o Instituto de Arquitetos do Brasil (Departamento do Distrito Federal) realizou concurso de ideias sobre o Eixão, aberto a toda a população. Analogamente à historinha do rei nu, a proposta vencedora foi de adolescentes, que propuseram modificações similares às sugeridas aqui. A solução apontada é a mais óbvia e natural, uma vez revertida a lógica rodoviarista — o que aliás está acontecendo no resto do mundo onde um dia ela prevaleceu, inclusive em cidades brasileiras como Rio e São Paulo. Nova prioridade é concedida a pedestres e ao transporte público. Os adolescentes tinham razão. E nós? Vamos continuar fingindo enxergar as belas vestimentas do rei?

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Sobre homicídio doloso no trânsito

Presidente da Comissão do Sistema Viário e de Trânsito da OAB-SP defende a alteração do Código de Trânsito Brasileiro para prever o crime de homicídio doloso:

sábado, 17 de setembro de 2011

Transporte é um direito

Transporte é um direito:

'via Blog this'

Uma reflexão interessante sobre a Tarifa Zero, por Lucas Monteiro, militante do Movimento Passe Livre e mestrando em História pela USP

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cármen, Laura e Esperança

Não sou jurista, minha formação é em engenharia. Portanto, falo do lugar de cidadão, não do de especialista. É na condição de cidadão preocupado com a segurança no trânsito que eu festejo, esperançoso, as posições da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal, e da promotora de delitos de trânsito Laura Beatriz Rito, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

O site do STF publicou anteontem a notícia da concessão de um habeas corpus pela primeira turma da casa, contra o parecer da relatora Cármen Lúcia. Segundo a nota, o requerente, dirigindo alcoolizado, havia provocado a morte de uma pessoa e por isso estava respondendo à acusação de homicídio doloso. Cármen Lúcia votou contra o habeas corpus, mas seu colega Luiz Fux pediu vista e votou pela sua concessão, no que foi acompanhado pelos demais membros da turma.

Com todo o risco de falar bobagem numa área de conhecimento que não domino, não consigo concordar com esse tratamento que a justiça costuma dar a quem assume o volante depois de beber. Na minha opinião, quem faz isso assume todos os riscos e, no caso de provocar lesões ou óbitos, adota a conduta que corresponde a nada menos que dolo. Ponto. Ao classificar a conduta como culpa, como tem sido comum entre os magistrados, a sinalização que o judiciário vem dando é a de que a circunstância da alcoolemia não agrava, mas atenua.

Ainda na minha opinião, essa tendência nefasta de passar a mão pela cabeça de quem fere e mata dirigindo depois de beber (como quem diz "ele estava bêbado, coitadinho...") predomina em nossa sociedade e talvez por isso se reflita com tanta naturalidade no judiciário. Parece que os magistrados, que em tantas oportunidades têm legislado, indo além de julgar, se negam a reconhecer o que a lei quer dizer. Ou alguém tem dúvida de que, ao aprovar a chamada "lei seca", a intenção do legislador era a tolerância zero?

Aí entra a lúcida fala da promotora Laura Rito em recente matéria pulicada no Correio Braziliense. Para mim, é inadmissível que o mundo jurídico interprete a recusa de soprar o bafômetro como exercício do direito de não produzir prova contra si mesmo. Como diz a promotora, mencionando interpretação da AGU, a licença para dirigir é uma concessão (temporária, ainda que renovável) do Estado. Assim, cabe ao Estado, a qualquer momento, assegurar que a concessão seja usada de maneira correta.

Ora, a lei prevê condições absolutamente claras para o execício da condução de veículos automotores, entre as quais figura a de não ter ingerido qualquer quantidade de álcool (artigo 276 do Código de Trânsito Brasileiro). Se o Estado não tem como aferir essas condições, não pode permitir que dirija um veículo o indivíduo que se recusa a provar que preenche os requisitos para tal. Mas não basta impedir que a pessoa deixe o local da abordagem dirigindo. Para ser coerente, o Estado precisa ter poderes de revogar sumariamente a licença de quem não aceita comprovar, a qualquer momento, que preenche as condições da concessão.

Bem, como eu disse no começo, o mundo jurídico não é o meu. Devo ter incorrido em inúmeros erros nestas mal traçadas linhas. Mas fica uma sugestão para os legisladores que eventualmente vierem a tomar conhecimento delas: conversem com a ministra e a promotora. Tenho certeza de que daí sairá um aperfeiçoamento que pode vir a reduzir o espaço para interpretações tão permissivas da legislação.

sábado, 21 de maio de 2011

10 minutos de bicicleta na EPTG

A EPTG, Estrada Parque Taguatinga, no Distrito Federal, foi ampliada recentemente. O projeto de ampliação previa ciclovias, que nunca saíram do papel.
Nesse vídeo, postado por Uirá Lourenço no YouTube, temos uma ideia do que é pedalar por ali em hora de pico:
YouTube - De bicicleta pela Linha Vermelha (EPTG)


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Carros não têm direito à privacidade

As placas nos veículos são obrigatórias. A lei não autoriza a circulação de veículos sem elas. Em outras palavras, todo mundo que assume usar um veículo automotor é obrigado a manter visível a identificação do mesmo. Portanto, a imagem do veículo é sempre pública. Ou seja, a única maneira de não ser identificado cometendo irregularidades é não cometê-las.

Digo isso a propósito da mensagem que recebi hoje do amigo Uirá Lourenço, que reproduzo abaixo.


Trânsito – direito à vida x direito de imagem
7/4/2011 – Uirá Lourenço

Todo dia, saio de manhã de bicicleta para o trabalho. Passo pela EPTG (“Linha Verde”), via que passou por mega-ampliação, com direito a túneis e viadutos exclusivos para carros. Apesar da fartura de espaço para os carros, muitos motoristas invadem a faixa de ônibus inoperante e o acostamento. O acostamento é, em tese, o local mais seguro para pedestres e ciclistas, afinal na via não existem calçadas nem ciclovias.
Sempre vejo colisões, ônibus quebrados e várias infrações de motoristas. Conversões proibidas, excesso de velocidade e invasão do acostamento. Muitas vezes, fotografo e filmo os apressadinhos e divulgo na internet e aos órgãos de trânsito responsáveis pela fiscalização.

Hoje cedo, saía do meu prédio, quando uma motorista (moradora do mesmo prédio) me chamou. O diálogo foi assim:

Ela, motorista (M): Acho que você tirou foto do meu carro ontem.
Eu, ciclista (C): Como? [surpreso]
M: É, você não estava de bicicleta na EPTG de manhã?
C: Sim, devia estar. Passo de bicicleta por lá.
M: Eu estava no acostamento e vi que você estava tirando foto. Deve ter fotografado meu carro.
C: Ahh.. você estava trafegando pelo acostamento?
M: Sim.
C: E você acha isso certo?
M: [silêncio]
C: Você sabe que é errado, que põe a vida das pessoas em risco?
M: [silêncio]
M: Mas eu tenho direito à minha privacidade. Não acho legal tirar foto assim.
C: E o direito à vida? Você achou certo pôr minha vida em risco?
M: Eu estava longe de você.
C: Mas poderia passar alguém a pé ou de bicicleta e você não perceber.
C: Você deveria pensar que poderia ser seu filho ou um parente seu na bicicleta e ter mais consideração. Você deveria ter mais respeito e não ficar arriscando a vida dos outros.
M: Também sou atleta. [querendo tirar o tom pesado da conversa]
C: Eu não sou atleta, uso a bicicleta como meio de transporte. É meu veículo.

Enquanto conversava comigo, o filho dela, de uns 7 anos, estava no banco de trás ouvindo, sem o cinto de segurança. Possivelmente, ele estava no carro ontem, enquanto a mãe trafegava pelo acostamento.
O motorista que atropelou vários ciclistas em Porto Alegre também estava com o filho no carro.
Fico pensando no exemplo de conduta que esses pais passam aos filhos. Será que formam cidadãos preocupados com a coletividade ou jovens preocupados apenas com o próprio umbigo, que não se importam em cometer uma infração gravíssima para evitar um congestionamento?
Vale lembrar o que dispõe o código de trânsito:

Art. 193. Transitar com o veículo em calçadas, passeios, passarelas, ciclovias, ciclofaixas, ilhas, refúgios, ajardinamentos, canteiros centrais e divisores de pista de rolamento, acostamentos, marcas de canalização, gramados e jardins públicos:
            Infração - gravíssima;
            Penalidade - multa (três vezes).

Será que o direito à privacidade (na verdade, a imagem do carro e não da pessoa) vale mais que o direito da pessoa de andar ou pedalar em relativa segurança?

Aliás, o direito dos pedestres e ciclistas de passar pela via já foi desrespeitado pelo próprio governo, de forma escancarada, ao não construir locais apropriados de circulação – calçadas e ciclovias.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Em defesa da tarifa zero, direito social ao transporte público urbano

Este excelente texto, fundamental, foi publicado originalmente no portal TarifaZero.org.

Em defesa da tarifa zero, direito social ao transporte público urbano
por Gert Schinke
A bandeira da tarifa zero, gratuidade do transporte público coletivo urbano, deve ser vista como uma conquista social da maior envergadura, colocada no mesmo patamar dos demais “direitos sociais” garantidos na Constituição Federal. Não é pouca coisa. Em certa medida, uma “utopia”, no bom sentido do termo, dada a sua envergadura, alcance e dimensão social. Tão pouco é novidade, pois até mesmo praticada em outros rincões mundo afora, e no Brasil também, ainda que limitadamente ao final dos anos 1980, no governo Erundina na Prefeitura de São Paulo. O paralelo com o sistema SUS é procedente no que diz respeito à universalização e gratuidade a toda população, embora ressalvando as deficiências e limitações que o sistema apresenta e se aprofundam dia a dia no conturbado meio urbano, carente de bom planejamento e boa gestão da coisa pública – corrupção, tráfico de influência, falta de transparência e participação. Também na educação fundamental, que deveria ser totalmente gratuita para a criançada, mas que, por motivos óbvios não é, também poderia se traçar esse paralelo. Lembro que já há uma articulação em marcha para apresentar uma PEC – Projeto de Emenda Constitucional, no Congresso, para aprovar a inserção do “transporte público urbano”, como “direito social”, coisa que a Constituição de 88 não assegurou ao lado das demais conquistas sociais. Mais adiante é possível compreender melhor porque isso não aconteceu naquela época.
10 – No contexto do capitalismo selvavem
A proposta da tarifa zero no transporte público coletivo urbano arranca uma conquista social do capitalismo, selvagem como o conhecemos na exploração do trabalho, da natureza, de qualquer coisa inerte e viva sobre a face da terra. Ela é, portanto, uma proposta de caráter socializante, que colocará à disposição de todas as pessoas o direito de ir e vir, no contexto da mobilidade social, coisa que hoje está longe do alcance da grande maioria das pessoas em nossa sociedade. Não é, todavia, uma proposta de cunhosocialista, modo de produção e regime que está no horizonte, quiçá longínquo, e que implica na superação do capitalismo enquanto modo de produção e sistema de dominação político-cultural. É bastante óbvio supor que num sistema socialista haverá transporte público gratuito, entre outras gratuidades a toda população, na “vida sem catracas”, coisas que o capitalismo não pode oferecer, e não as consuma sequer nos chamados países ditos “ricos”. Quem imagina, portanto, que apenas num regime socialista poderá haver tarifa zero se engana – ela está totalmente ao alcance num país de duro capitalismo selvagem como o nosso. O que a fará existir, de fato, é o resultado do cabo de forças políticas que arrancará do sistema mais essa conquista social, assim como o foi a gratuidade da educação fundamental e o SUS na saúde pública.
9 – Um cabo de guerra permanente
Lutar por um “não aumento da tarifa”, ou por qualquer “menor aumento”, é um cabo de guerra no contexto do capitalismo que extorque, sob o regime de concessão, um sobre-lucro da população. A operação por parte das empresas transportadoras conta, normalmente, com o total apoio do poder público, ator fundamental no cenário e que age com evidente cumplicidade orgânica e política com as mesmas. O cabo de guerra é permanente e sempre necessário para evitar ainda maior exploração da população, mas não altera, contudo, o modo de operação do sistema de transporte. Tampouco aponta para a universalização do mesmo. Entre muitos outros exemplos desses “cabos de guerra”, lembro a intervenção no sistema de transporte público levado a cabo na administração da Frente Popular em Porto Alegre, no início de 1989, em função na negativa dos empresários em manter as tarifas congeladas, razão pela qual promoveram um lock-out no transporte, fator que “obrigou” a intervenção nas empresas. Esse cabo de guerra foi vencido depois de três dias de absoluto caos na cidade, muita tensão e disputa na opinião pública, manutenção das tarifas originais e a retomada dos serviços por parte das empresas privadas de ônibus. À época eu exercia a vereança na bancada da Frente Popular, me envolvi diretamente nas ações de resistência popular e defendi a intervenção do poder público nas empresas privadas com toda energia. Mas o sistema não mudou em sua estrutura, apenas melhorou em alguns itens ao longo dos anos que se seguiram. As melhorias são sempre bem vindas, mas o povo continua pagando tarifa individual para cada viagem que realiza, assim como em todo lugar no Brasil.
8 – Condicionamentos culturais realimentados
Por que você acha normal que deva haver postos de saúde, hospitais e equipes médicas multidisciplinares de plantão 24 horas por dia? E tudo gratuito? E porque você acha normal que o transporte público coletivo seja cobrado individualmente a cada viagem e não seja “de graça”, como é o atendimento do SUS? O seu direito de ir e vir, de desfrutar da cidade, não é equivalente em valor do seu direito à saúde, à educação, entre outros serviços prestados pelo Estado? Embora seus direitos sejam “individuais”, o serviço não o é – ele é coletivo, fator que estabelece as rotas, os horários, os equipamentos e todas as regras para que ele funcione dignamente com esse propósito – atender coletivamente a sociedade. Prega a cultura hegemônica que o ônibus deveria chegar à porta de sua casa de minuto a minuto, coisa totalmente ilógica, irreal e com o único propósito de denegrir a imagem do transporte coletivo. É um argumento claramente falacioso, fartamente utilizado pela indústria automobilística na promoção do “império do transporte individual”, motivo pelo qual vende o carro, a motocicleta. Esse “modo individual”, ainda que cada vez mais limitado em função dos seus custos ecológicos e sociais, pode chegar à porta da sua casa e ser utilizado no minuto em que você o desejar, trazendo-lhe a sensação da virtual “disponibilidade permanente”, prazer e outros sentimentos a ele associados. A indústria automobilística já há muito tempo luta justamente contra o fantasma das severas limitações impostas à circulação de automóveis nas grandes cidades e, em função desse parâmetro, miniaturiza os modelos, constrói sob condições cada vez mais econômicas, pois disputa ferozmente a população “no mercado da mobilidade”, especialmente diante dos sistemas de transporte coletivos, seja prestados pelo Estado, sejam prestados por empresas privadas. O transporte coletivo, portanto, compreende regras socialmente negociadas, padronização, constância, fiscalização governamental e dos usuários, entre outros quesitos, que lhe empresta a credibilidade enquanto alternativa de qualidade no “ir e vir”. São dois sistemas que partem de pressupostos e motivações completamente distintas. Quando o equilíbrio entre os diversos modais de transporte é quebrado, fazendo a equação pender para o lado do transporte individual de passageiros, surgem os inexoráveis congestionamentos de trânsito e conseqüente poluição atmosférica – chaga das metrópoles em todo mundo.
7 – A sedutora propaganda do carro
A indústria automobilística incrementou como nunca suas estratégias para seduzir as pessoas nas últimas décadas. Esse “objeto de desejo” está no plano do amor. Nesse jogo do vale tudo, usa o apelo sexual, aventureiro, nobre, despojado, esportivo, e todo um imenso leque de parâmetros idiossincráticos e culturais para que a pessoa se sinta na “obrigação moral” de comprar um automóvel, sem o qual ela não será bem vista na “sociedade do automóvel”. Já quanto ao modelo, é óbvio que ele terá que se adequar ao poder de compra do consumidor, razão pela qual se produzem carros para pobres assim como para bilionários. Faz sentido produzir, em época de economia de energia e de materiais, automóveis seriados com motores de 1000 cavalos de potência? Alguns destes custando vários milhões? Antes de dar algum lucro, acima de tudo eles são ícones de marcas, de poder, de status, da indústria e de quem os compra. A “Fórmula 1” é produto direto dessa macabra estratégia que confunde esporte com tecnologia. Ainda se vale do “greenwash” – maquiagem verde, trabalhando o apelo ecológico nos automóveis, de forma a torná-los “mais verdes” – hoje quase virtualmente recicláveis, “ambientalmente corretos”. E isso seduz milhões de pessoas que consomem e surfam na “onda verde tecnológica” em todos os setores. Toda a ampla cultura que gira em torno do automóvel, desde os brinquedos de criança, passando pelos clubes de marcas, corridas, exposições, concursos, e todo tipo de iniciativas associadas, emprestam à nossa sociedade industrial moderna uma marca única na história recente, com traço totalmente distinto se comparada às nações indígenas ou a povos que ainda resistem bravamente à sanha da indústria automotiva e os setores a ela associados. O complexo “das auto” vale-se de uma miríade de milionárias e sofisticadas pesquisas de opinião (market share) para aprimorar e lançar novos produtos, ao mesmo tempo que consolida valores culturais na contramarcha da igualdade e respeito de gêneros, das culturas locais, de estilos de vida anti-consumistas e frugais. Como é possível, em pleno século XXI, num mundo que clama por igualdade entre gêneros, na era dos “direitos humanos”, ver tanta exploração sexual da mulher, figura onipresente nas feiras automotivas de toda ordem, banalizada e usada como adorno nos produtos ali expostos? Isso é tido como “normal”, “aceitável”, “tolerável” em nossa sociedade machista. Desde o “calendário da Pirelli”, onipresente nas borracharias, até o honorável presente dos pais aos filhos que passaram em algum vestibular, deificam o automóvel. A estratégia de expansão e sobrevivência da indústria automotiva, calcada no binômio marketing e mídia, atua como um dos mais eficientes atores do “soft power”, estratégia política que prioriza a cultura e o estilo de vida como forma de dominação e controle político sobre a população. Quem ama automóvel, adora o capitalismo, o sistema que lhe deu “vida”. Se você é um autêntico anti-capitalista, vá de ônibus, a pé ou de bike. Automóvel é o maior ícone do capitalismo.
6 – Subsídios diretos e indiretos para o sistema carro
Colocando o automóvel em sua cadeia produtiva se tem a real dimensão do seu “poder” dentro da nossa sociedade de consumo moderna. Aço, plástico, borracha, madeira, fibras, óleo, petróleo. Muito petróleo. Para extrair, elaborar e distribuir tudo isso, antes mesmo de se ter um automóvel, energia. Muita energia. O peso do modal automóvel no sistema produtivo capitalista é enorme, fator do seu rápido desenvolvimento e recuperação no pós-guerra, assim como fator de aceleração da globalização nas décadas recentes. Cabe lembrar que a dependência energética ao petróleo aprofundou-se na medida em que a indústria automobilística cresceu e tomou o planeta. Os países árabes e os demais grandes produtores de petróleo estão umbilicalmente enredados com o sistema econômico global, pano de fundo para um complicado cenário político dominado por longevas ditaduras de todo tipo e perfil, invariavelmente ligadas às grandes petroleiras. Não é possível dissociar a indústria automotiva do capitalismo selvagem e global como o conhecemos hoje – impregnado de tecnologia, poluído, mortífero. Nas grandes cidades, seu peso é ainda mais sentido, na forma da ocupação dos espaços urbanos, competindo com demandas sociais por espaços de lazer, cultura, esporte e toda uma série de atividades necessárias a uma boa qualidade de vida no meio urbano. No Brasil, porém, o modal rodoviário superou a maioria dos países mundo afora na deformação de sua matriz de transporte. Na cena brasileira conquistou absoluta hegemonia diante dos modais ferroviário e aquaviário, que, em comparação a outros países, superam-no largamente em volumes transportados. Aqui o processo cunhou de “rodoviarista” a diretriz que efetivou o predomínio do caminhão e do automóvel sobre o trem e o navio. De outra parte, os subsídios diretos e indiretos ao modal automóvel são imensos, e por vezes maquiados, para que possam ser absorvidos politicamente pela sociedade. Na vasta indústria metal-mecânica, química e siderúrgica, base do insumo para a indústria automobilística, há uma injeção bilionária de aportes por parte dos bancos públicos de fomento econômico – BNDES, BB e CEF, além dos seus similares estaduais e regionais, para ficarmos somente em um exemplo. É um subsídio indireto à indústria automobilística paga por todo povo, embora fruído por uma pequena parcela. Quando se constrói mais um viaduto está se tirando dinheiro de outro lugar, como para uma escola, um centro de saúde, ou outro investimento que, por suas características próprias, atenderá as pessoas diretamente visando seu crescimento enquanto cidadãos – desenvolvimento humano, ao passo que o viaduto normalmente só propicia maior velocidade de tráfego. No contexto das “isenções fiscais” ocorrem verdadeiras aberrações do ponto de vista das prioridades de investimentos públicos, forma de injeção direta de dinheiro público no lucro das montadoras, quando, por exemplo, se abre mão de décadas de impostos, como soe acontecer em todos os cantos do Brasil, a título de criação de empregos. A roda do complexo “das auto” gira mais acelerada, produz mais traquitanas, requer mais estradas e viadutos, clama por mais energia, processo visivelmente insustentável. Logo no início da revolução sandinista na Nicarágua, a administração municipal da capital Manágua adotou uma espécie de “colaboração espontânea” de tarifa de ônibus, suspendendo as tarifas normais até então praticadas no sistema privado da “era Somoza”, política que tinha como principal objetivo o estímulo ao uso do ônibus por parte da população, para garantir que a roda da combalida economia girasse. Ao mesmo tempo, garantia combustível ao sistema público mediante total subsídio, uma vez que faltava combustível ao país – todo importado à época. Lá, num país muito mais pobre do que o Brasil, o sistema de transporte público funcionava efetivamente como se estivesse vigindo uma espécie de tarifa zero, embora não com esse nome. E o modo de produção naquela pobre Nicarágua estava longe de ser algo parecido com o socialismo.
5 – O implacável e eficiente lobby da indústria automotiva
Na disputa pelos investimentos públicos a indústria automotiva se vale de um forte e eficientíssimo lobby político, quase imbatível nos dias atuais, especialmente no Brasil, cuja estrutura político/institucional do Estado é altamente vulnerável a ele; e impregnado pela visão do desenvolvimentismo material vulgar, produto dos padrões culturais impostos pelo estilo de vida consumista reinante nos países “ricos”. No Congresso Nacional, por exemplo, acordos partidários para a ocupação dos cargos nas Comissões Permanentes da Câmara Federal e do Senado, colocam alguns deputados e senadores “chaves”, cujas campanhas eleitorais recebem apoio dos setores empresariais ligados à indústria automotiva e seus associados, como transportadoras, construtoras de obras civis, distribuidoras de veículos, consórcios e seguradoras, dentre muitos outros, no comando de comissões estratégicas, como a Comissão de Viação e Transportes, por exemplo, agora presidida pelo Deputado Rodrigo Garcia (DEM- SP). Toda legislação, todos os investimentos destinados ao setor, regulamentações e outros interesses, passam por esta comissão e tem no deputado um lobista no lugar apropriado para costurá-los entre seus pares. No grande cenário de uma “matriz de dominação política”, a ocupação desses cargos, dentre outros na estrutura do Estado, é de vital importância para o setor. A exemplo de outros setores empresariais, como o do cigarro e de bebidas, por exemplo, assim é feito, funciona muito bem e produz ótimos dividendos aos mesmos. Não por acaso, são os setores que mais resistem ao “financiamento público de campanhas eleitorais”, pois isso lhes tira poder sobre seus candidatos.
4 -  O SUS do transporte coletivo urbano
Da mesma forma como o SUS foi justificado para que fosse criado, propiciando atendimento universal e gratuito a toda população, um sistema de transporte coletivo urbano se justifica pelos mesmos critérios, e, assim como acontece com a saúde, você poderá optar por utilizar ou não utilizar o sistema público gratuito. A clínica privada convive com o SUS e com ele disputa permanentemente a população adoentada. Por isso, trabalha para que o SUS degenere e baixe sua qualidade de atendimento. Quem teria seus interesses contrariados com um sistema de tarifa zero? Certamente as empresas privadas no ramo do transporte de passageiros, a indústria automobilística e todos os seus associados, que, via de regra, hoje se beneficiam com o sistema tal qual o conhecemos – sob o regime de concessão para a exploração da iniciativa privada. É bom lembrar, em complemento ao que já foi colocado anteriormente, que o lobby das empresas de ônibus privadas é um dos mais eficazes articuladores políticos, patrono de incontáveis personagens da vida política e gerador de negócios escusos na sua orgânica e visceral relação com o poder público em suas três esferas administrativas – municipal, estadual e federal. Esse fator, por si só, será um dos maiores entraves para implantar um sistema de tarifa zero, pois o empresariado se aferra ao regime de concessão pública dos serviços, caracterizados por sua longuíssima duração no afã de perpetuar seu rentável negócio. A contratação direta de frotas por parte do poder público dispensaria o regime de concessão atualmente empregado, o que não inviabiliza o negócio do transporte coletivo de passageiros, apenas o reposiciona no mercado. Daí o porquê da necessidade de aprovar a PEC no Artigo 6º da Constituição – dar solidez e status de “direito social” ao transporte público coletivo urbano, e, com isso, fortalecer a injeção direta de recursos públicos no sistema de transporte. De outra parte, se todos poderão usar, quem paga a conta de um sistema que oferece transporte gratuito? Haveria várias formas de se fazer isso: criação de um fundo público específico; destinação orçamentária em detrimento de outras destinações já existentes – invertendo prioridades, entre outras possibilidades. Quanto a prioridades, ao invés de um novo viaduto ou de novo recapeamento asfáltico, por vezes claramente dispensável, recurso para o custeio direto do sistema de transporte público.
3 – O olhar ecológico aponta para a tarifa zero
Há, dentre todos os argumentos a favor da implantação do sistema de tarifa zero, um que ganha cada vez mais força e consistência: o fator “ecológico” dessa medida. Sob o ponto de vista do uso mais racional da energia, incrementar o uso do transporte coletivo nas cidades é claramente mais adequado do que incrementar o uso do automóvel e quaisquer outros tipos de automotores individuais. Fazer com que uma boa fatia dos usuários dos modais individuais migrem para o sistema coletivo fará com que diminuam os enormes e onipresentes congestionamentos no trânsito urbano, dispensará áreas para estacionamentos e, o melhor de tudo, freará a expansão alucinada do sistema viário que não para de crescer e chegar aos mais isolados rincões – fator de inexoravelmente realimentação da expansão urbana. Estamos falando em ofertar um bom transporte público para quem hoje utiliza o individual. Esse fator é ainda mais premente quando numa situação como a que vive Florianópolis, cidade confinada numa ilha oceânica, de espaço limitado, onde a expansão urbana conflita cotidianamente com a natureza que se pretende preservada, seja por via da pressão política, seja por via da legislação ambiental. O processo do Plano Diretor Participativo evidenciou que na atual gestão municipal a política que vigora é a do não-planejamento urbano, ao procrastinar a revisão do Plano Diretor indefinidamente, sem qualquer regime de moratória construtiva, ao tambor de uma farsa participativa, e que consumou ao longo dos últimos anos o mais aviltante processo de especulação imobiliária que a cidade já vivenciou. Administração para os especuladores imobiliários. No caso específico de Florianópolis, de urbe policêntrica, o atual preço da tarifa é alto, tendo em vista vários deslocamentos do usuário do ônibus ao longo do dia, fator que inibe concretamente a fruição da cidade por parte da população de menor renda e penaliza principalmente a juventude desempregada. Se a implantação de um sistema tarifa zero resultar concretamente em aumentar a mobilidade para essa população e, ao mesmo tempo, reduzir o número de viagens de automóveis na cidade, ele já produziu um enorme ganho social e ecológico para fruição de todas as pessoas – ganho de caráter universal, portanto. Por outro lado, o poder público pode incrementar em muito o uso de combustíveis mais apropriados quando ele contrata as frotas, estabelecendo critérios e parâmetros técnicos para os veículos, com vistas à diminuição da poluição atmosférica, fator importante nas grandes cidades e diretamente vinculado aos índices de saúde pública e de desenvolvimento humano. Adentramos na era do biodiesel e dos ônibus elétricos.
2 – Integração de modais é vital
No contexto de políticas de transporte público urbano, é necessário olhar para a integração efetiva dos modais de transporte de passageiros, coisa que patina em nosso país: Casa - bicicleta – ônibus – metrô – a pé – barco – metrô – ônibus – bicicleta – casa, só para ficarmos num mero exemplo prático. A integração de modais de transporte no meio urbano está diretamente relacionada à eficiência de todos os sistemas coletivos e o grau de qualidade dessa integração é fator definidor para o abandono dos mesmos em favor da adesão de meios individuais de locomoção automotores – automóveis e motocicletas. Como é possível explicar que, do ponto de vista dos custos e da comodidade, parece ser mais interessante se locomover na Ilha de Santa Catarina com uma motocicleta do que com o sistema ônibus? E por qual razão não há verbas para implantar redes cicloviárias e bicicletários ao passo que há verbas abundantes para pavimentar rodovias e construir viadutos por todos os lados? Verbas existem, sua aplicação, porém, é resultado de uma disputa política permanente, via de regra pendendo para o lobby rodoviarista - poderoso exército de atores muito bem articulados em todas as esferas da administração pública. Florianópolis é um clássico exemplo onde esse cenário se evidencia.
1 – Dimensão metropolitana na gestão do transporte coletivo
Por fim, é imperioso lembrar a integração dos sistemas de transporte coletivos urbanos na esfera metropolitana, curso no qual também estamos bastante atrasados, aqui e acolá. Os inúmeros aglomerados urbanos dispersos em todo Brasil, com suas populações entre 400 mil a um milhão de habitantes, são próprios para estabelecer sistemas integrados de transporte, a exemplo de outros serviços públicos essenciais, como saneamento básico, por exemplo. Nesse cenário, o regime de tarifa zero também ajuda a consolidar essa dimensão da gestão pública. Diante das verdadeiras aberrações administrativas que vivenciamos hoje, a par da era digital, que produzem tantas deformações e conflitos tarifários, de horários e tudo mais, haveria certamente também um enorme ganho de eficiência e qualidade para a população envolvida nessas imensas regiões conurbadas Brasil afora. Não falta conhecimento para viabilizá-las, falta vontade política. E quando ela falta, tem que trocar os políticos que estão à rédea dos governos. Simples assim.
Por todos os argumentos acima colocados, a par das inúmeras ponderações complementares que o tema ensejará, estou convicto que a implantação da tarifa zero no transporte coletivo urbano de passageiros será um marco em nosso país, uma enorme conquista de caráter social, assim como o foram as demais conquistas arrancadas duramente ao longo das últimas décadas até o presente. Ela não cairá do céu, porém, mas resultará de um embate vigoroso contra o lobby automotivo e seus associados históricos.
Tarifa zero é mais um passo no longo caminho para uma vida sem catracas.
Florianópolis, abril de 2011

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A idolatria da máquina e o atropelamento de ciclistas

Esta postagem foi publicada originalmente em Somos Andando:




A idolatria da máquina e o atropelamento de ciclistas

Eu estava fora de Porto Alegre quando fiquei sabendo do absurdo que aconteceu em Porto Alegre sexta-feira no fim da tarde. Fora de Porto Alegre, quase sem internet e praticamente sem ver TV, tanto que acabei sabendo apenas no sábado, pela Zero Hora. Além de indignada, fiquei preocupada e liguei na hora para um amigo que participa sempre da Massa Crítica. Por sorte nesta última ele se atrasou e chegou só depois que o estrago já estava feito. Também por sorte, o tempo estava feio e tinha menos gente. Principalmente, não tinha crianças.

Mas outras pessoas estavam lá e se machucaram. Meu amigo me passou o contato de outro ciclista, que participava pela primeira vez, com quem conversei por telefone e cujas declarações coloquei aqui ontem. Mas faltou dizer algumas coisas. Faltou constatar, por exemplo, que Porto Alegre segue a cultura do resto do país, imitada dos americanos, em boa parte. A idolatria do carro confere aos motoristas a sensação de poderes especiais.
Passei toda a infância e a adolescência sem carro. Meus pais andavam de ônibus, e era assim que eu ia e voltava do colégio. Que era particular, o que fazia com que eu fosse um dos poucos alunos que usavam estritamente o ônibus como meio de transporte. Nunca me deixei abalar, mas eu sempre parecia meio pouco perto dos outros. Uma bobagem tremenda.
Como nosso transporte público é deficitário, deixei de aproveitar muitas coisas porque o passeio se tornaria uma indiada de troca de ônibus, que são demorados nos fins de semana, e eu levaria horas para chegar a alguma atividade mais distante. Indo de táxi, sairia uma fortuna; a grana era curta.
Quando já tinha mais de 20 anos, aprendi a dirigir na auto-escola na mesma época em que minha mãe comprou um carro. Foi aí que ela veio me dizer que também tinha uma sensação de inferioridade nos meios em que circulava. São essas sensações veladas, que a gente tem um pouco de vergonha de admitir.
Quando a gente dirige, é automática a sensação de poder. Isso porque o carro é uma máquina poderosa, mas principalmente porque a nossa cultura supervaloriza o automóvel. Vale mais socialmente quem tem carro. É errado. Mas muita gente se deixa levar por isso, e não é preciso ir longe para comprovar. Os pedestres são constantemente desrespeitados, assim como os demais motoristas, as calçadas, as bicicletas. Tudo ao redor é menor. O carro empodera o motorista, que se sente o dono da rua, passível de cometer qualquer infração e, às vezes, crimes, como o de sexta-feira.
Pode parecer que não tem nada a ver, mas todo o problema tem uma mesma origem.
Tudo isso, aliado à sensação – às vezes certeza – de impunidade, causa danos tremendos. Alguns grandes e mais alarmantes, como as tragédias que levam vidas, as que machucam, as que causam danos materiais. Mas também desvirtua nossa sociedade, inverte nossos valores. Não há razão para achar que um carro faz alguém valer mais que o outro. Não há motivo para idolatrar uma máquina que não pensa, não sente, que pode trazer conforto, mas não pode trazer felicidade. Essa mesma máquina é transformada por nós, que lhe atribuimos um valor que não tem e acabamos nos permitindo pequenos pecados. O pecado de xingar o vizinho do carro ao lado porque, afinal, meu carro é maior, poxa. Ou por passar reto sem olhar o pedestre que equilibra sacolas de supermercado sob a chuva e só precisa atravessar a rua para chegar em casa. Os pequenos pecados que nos fazem egoístas, que nos isolam, que nos tornam injustos.
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Recebi por e-mail o texto a seguir, de Alves Rodrigues. Apesar de não concordar com tudo, acho que bate nessa mesma tecla, e vale para reflexão e para impulsionar o debate. Recomendo também “Um tal Sr Volante em POA, espero que um carro a menos”, em que Cíntia Barenho propõe a mesma discussão e acrescenta outros argumentos. Outro bom texto é o “Bicicletas em um Porto não muito alegre”, do Paulo Marques.

Eu não sei o que esses ciclistas têm na cabeça

Tem um maluco solto na cidade. Quer dizer, um só não, tem um monte deles. Mas me refiro a um psicopata em especial. Um que foi visto na noite da última sexta-feira (25), armado de um Golf preto e tentando assassinar o maior número possível de ciclistas participantes do Massa Crítica (movimento gaúcho pela valorização da bicicleta como meio de transporte).
Eu não sei o que esses ciclistas têm na cabeça. Não sei de onde eles tiraram a ideia de que têm o direito de usarem as rua de Porto Alegre sem o prévio consentimento da EPTC. Ora, onde já se viu? Desaforados. Esses caras estão pensando o quê? Que vão mudar o mundo? Não respeitam o sagrado direito de ir e vir (de carro, é claro). As ruas de Porto Alegre e da região metropolitana são para os carros, não são para pedestres, ciclistas, carroceiros, catadores de lixo reciclável e seus carrinhos que dificultam a “mobilidade urbana”. Lugar de ciclista é nos parques. (Na ciclovia transformada em estacionamento é que não pode ser.) Pelo menos é isso que parece pensar o sr. Vanderlei Capellari, diretor da EPTC, que alega que a empresa não foi informada sobre a intenção do grupo de pedalar pelas ruas da Capital. Isso não me parece fazer sentido, e por dois motivos: o primeiro é que o Massa Crítica se reúne toda última sexta-feira do mês já há bastante tempo, fico surpreso com o desconhecimento do senhor diretor; e o segundo é que se essas mesmas pessoas resolvessem se encontrar no mesmo lugar em que se encontraram na sexta-feira, no mesmo horário e percorrerem as mesmas ruas, de carro e não de bicicleta, não precisariam “pedir” nada para a EPTC. Bicicleta não é meio de transporte, não é veículo? Ciclista não é um personagem do trânsito como outro qualquer?
Atropelamento intencional, acreditem, não é tentativa de homicídio, é “lesão corporal”. Ao menos é o que acredita o delegado Gilberto Almeida Montenegro, diretor da Divisão de Crimes de Trânsito de Porto Alegre. Eu juro que pensava que se eu tivesse um carro e o usasse para passar deliberadamente sobre um grande grupo de pessoas, ia acabar me incomodando. Estava enganado. Isso não me causaria problema se essas pessoas estivessem desrespeitando o indiscutível direito de ir e vir dos egoístas mauricinhos de classe média em seus carros financiados a longo prazo. “Aqui não é a Líbia”, disse o delegado, “aqui todos têm liberdade de manifestação, desde que avisem as autoridades”. Quer dizer que é assim? Se as autoridades permitirem eu posso ser livre? Oba, viva a liberdade.
Não deveríamos estar tão surpresos com as declarações destes representantes do Estado. Lembram do jardineiro de Brasília? Se não lembram vou contar. Vou contar aquela história de um ministro (por ironia, Ministro dos Transportes) que voltava, na companhia de seu filho, de um churrasco regado a bebida alcoólica lá na Capital Federal. Dizem que quem dirigia era o filho do ministro, dizem que não tinha bebido. Não sei. Sei apenas que um jardineiro, um trabalhador, foi atropelado e abandonado caído no asfalto. Ficou lá, não teve assistência dos atropeladores. Julgados, pai e filho foram inocentados da acusação de omissão de socorro. A Justiça (cega) concluiu que por estar a vítima já morta, não havia mal nenhum na atitude dos atropeladores de irem para casa e de lá ligarem para a polícia. Ninguém foi preso, mas, magnânima, a Justiça “condenou” o réu, o filho do ministro, ao pagamento de algumas cestas básicas. Eu sei que a Justiça tem de ser cega, mas não acho que devesse levar a coisa tão ao pé da letra.
O caso do atropelamento em massa aqui de Porto Alegre parece que seguirá pelo mesmo caminho. Mesmo antes da identificação do atropelador, Polícia Civil e EPTC já encontraram alguém para culpar: as vítimas.
Parecia bobagem a figura que eu fiz no post anterior, aquele sobre o metrô de Porto Alegre, mas podem acreditar que é assim mesmo que pensam as autoridades quando falam de mobilidade urbana. Em suas mentes, a imagem de ruas repletas de carros circulando sem serem atrapalhados por pedestres ou outras formas de transporte é a imagem da cidade ideal, moderna, desenvolvida. Quem sabe, quando construírem o tal metrô, não construam também, paralelo aos trilhos, uma ciclovia? Ficaria perfeito. Lugar de ciclista, nas modernas metrópoles capitalistas do Brasil do terceiro milênio, é junto com os trabalhadores: debaixo da terra. O cara do Golf preto só quis ganhar tempo e mandar os ciclistas pra lá de uma vez, não teve paciência de esperar o metrô ficar pronto.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O carro, por André Gorz

(…) Gorz identifica o carro como um bem de luxo, usufruído por uma minoria. A partir daí, aponta os problemas de uma política pública que se propõe a “garantir um carro para cada família” e a fortalecer a indústria automobilística (algo bastante próximo, aliás, da política realizada pelos governos brasileiros há mais de meio século). Gorz critica também a demagogia da esquerda que vê o carro como uma “vaca sagrada”. (…)

Leia o post completo no blog Brasil e Desenvolvimento.