quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cármen, Laura e Esperança

Não sou jurista, minha formação é em engenharia. Portanto, falo do lugar de cidadão, não do de especialista. É na condição de cidadão preocupado com a segurança no trânsito que eu festejo, esperançoso, as posições da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal, e da promotora de delitos de trânsito Laura Beatriz Rito, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.

O site do STF publicou anteontem a notícia da concessão de um habeas corpus pela primeira turma da casa, contra o parecer da relatora Cármen Lúcia. Segundo a nota, o requerente, dirigindo alcoolizado, havia provocado a morte de uma pessoa e por isso estava respondendo à acusação de homicídio doloso. Cármen Lúcia votou contra o habeas corpus, mas seu colega Luiz Fux pediu vista e votou pela sua concessão, no que foi acompanhado pelos demais membros da turma.

Com todo o risco de falar bobagem numa área de conhecimento que não domino, não consigo concordar com esse tratamento que a justiça costuma dar a quem assume o volante depois de beber. Na minha opinião, quem faz isso assume todos os riscos e, no caso de provocar lesões ou óbitos, adota a conduta que corresponde a nada menos que dolo. Ponto. Ao classificar a conduta como culpa, como tem sido comum entre os magistrados, a sinalização que o judiciário vem dando é a de que a circunstância da alcoolemia não agrava, mas atenua.

Ainda na minha opinião, essa tendência nefasta de passar a mão pela cabeça de quem fere e mata dirigindo depois de beber (como quem diz "ele estava bêbado, coitadinho...") predomina em nossa sociedade e talvez por isso se reflita com tanta naturalidade no judiciário. Parece que os magistrados, que em tantas oportunidades têm legislado, indo além de julgar, se negam a reconhecer o que a lei quer dizer. Ou alguém tem dúvida de que, ao aprovar a chamada "lei seca", a intenção do legislador era a tolerância zero?

Aí entra a lúcida fala da promotora Laura Rito em recente matéria pulicada no Correio Braziliense. Para mim, é inadmissível que o mundo jurídico interprete a recusa de soprar o bafômetro como exercício do direito de não produzir prova contra si mesmo. Como diz a promotora, mencionando interpretação da AGU, a licença para dirigir é uma concessão (temporária, ainda que renovável) do Estado. Assim, cabe ao Estado, a qualquer momento, assegurar que a concessão seja usada de maneira correta.

Ora, a lei prevê condições absolutamente claras para o execício da condução de veículos automotores, entre as quais figura a de não ter ingerido qualquer quantidade de álcool (artigo 276 do Código de Trânsito Brasileiro). Se o Estado não tem como aferir essas condições, não pode permitir que dirija um veículo o indivíduo que se recusa a provar que preenche os requisitos para tal. Mas não basta impedir que a pessoa deixe o local da abordagem dirigindo. Para ser coerente, o Estado precisa ter poderes de revogar sumariamente a licença de quem não aceita comprovar, a qualquer momento, que preenche as condições da concessão.

Bem, como eu disse no começo, o mundo jurídico não é o meu. Devo ter incorrido em inúmeros erros nestas mal traçadas linhas. Mas fica uma sugestão para os legisladores que eventualmente vierem a tomar conhecimento delas: conversem com a ministra e a promotora. Tenho certeza de que daí sairá um aperfeiçoamento que pode vir a reduzir o espaço para interpretações tão permissivas da legislação.

7 comentários:

Marcos de sousa disse...

Concordo com você Paulo, também como cidadão fico perplexo com essas decisões da Suprema Corte em que o direito á vida não é levado em conta, mas uma suposta liberdade de não se incriminar, não importando se os resultados produzidos fossem plenamente previsíveis. Minha expectativa era de que um ministro indicado tão recentemente estivesse mais sensível ao clamor da sociedade, e mais afinado com as poucas iniciativas dos outros poderes para conter essa vergonha que é a violência no trânsito do Brasil. Talvez se o nobre ministro pudesse por um momento sentir a irracionalidade e despropósito presente em cada morte no trânsito, teria um outro viés de análise que não o do status quo vigente desde a colônia.

Cynthia Bertholini Santos disse...

Também não sou advogada, mas acho uma lástima que não se defenda a vida e a responsabilidade que todos temos uns com os outros. Como leiga, fica a impressão que desvirtua-se do que é basilar para discutir e decidir os acessórios.
Isso pode e deve mudar. Leva algum tempo, é preciso (entre tantas outras coisas - não quero pretender ter a solução) construir uma sociedade que, genuinamente, se respeite, se preserve e reforce ainda mais o seu já reconhecido espírito de solidariedade.

Unknown disse...

Muito bom o texto. Parabéns!!!
Acrescentei vcs no meu blog (http://transesegure.blogspot.com/). Abç,

Fabiana disse...

Caro professor.

Concordo com suas palavras, como você mesmo disse, tomando o sentimento como cidadã.

Infelizmente, o infrator tem o direito de não produzir provas contra si, mas o nosso queridíssimo STF esquece do direito primordial, que é comum a todos: direito à vida.

Acredito que nenhum parente destes ilustríssimos ministros sofreu algum acidente em decorrência de um motorista que consumiu álcool, porque esse pensamento do projeto de lei mostra a falta de sensibilidade e de respeito às pessoas que sofrem ou já sofreram com um drama de vida como este.

Nosso país, mais uma vez, mostra que a lei só favorece a quem comete crimes, e o cidadão de bem fica à mercê da sorte.

Até mais.

VIVO NO TRÂNSITO disse...

Prezado Paulo, sua colocação reflete a opinião da maioria. Abaixo segue um comentário meu. Acesse meu blog para compartilharmos nossas opiniões http://motoristabrasil.blogspot.com/
Há dois séculos atrás, ou seja, há mais de 200 anos, um filósofo, economista, literato e jurista italiano, chamado Cesare Beccaria escreveu em seu documento “Dos delitos e das penas”, a seguinte frase: “...não é o rigor da lei, mas a certeza de sua aplicação, que demove o criminoso potencial de praticar efetivamente crimes. Somente a pena concreta é que faz o papel pedagógico da prevenção...”
Vale destacar nesta brilhante expressão acerca do mecanismo funcional de uma lei, os fins a que ela se presta, ou seja, a prevenção, alcançada pela ferramenta pedagógica de sua aplicação. Precisamos refletir muito, acerca dessa importante frase de Beccaria, para evoluirmos em nossas leis.
Quando lançada há um ano, a chamada “Lei Seca” teve sua sustentação alimentada pela mídia que, mais uma vez, cumpriu o seu papel fiscalizador, diria quase investigador, da questão que inseria um contexto “normatizador” na condução de veículo motorizado no país. Aliás, se a mídia não mantém na memória da sociedade determinadas discussões, tudo passa despercebido e sem a devida importância.
Todo o aparato fiscalizador (possível) foi mobilizado em âmbito federal, estadual e municipal para afirmar à sociedade que dali por diante tudo seria diferente. E foi por pouco tempo Era óbvio que num primeiro momento, inúmeras ocorrências resultariam na aplicação dessa nova lei, afinal, esse país é recordista mundial na fabricação e consumo de bebida, em cada quarteirão se pode escolher em quantos “butecos” tomar uma “gelada” e, seria fácil autuar motoristas bêbados (continua sendo). Ela serviu para confirmar o que todo mundo sabia e já fazia há muitas décadas e, não alterou o comportamento, o hábito de utilizar o carro para ir beber. Esse é o grande desafio que temos que combater, qual seja o hábito de consorciar o veículo com a bebida. Vale lembrar que a bebida hoje em dia, é apenas um componente de outras drogas associadas costumeiramente entre os seus usuários.
Mas a lei não tem potencial para promover mudança definitiva de comportamento. Ela está promovendo no momento, adaptações na maneira do indivíduo se embriagar e dirigir, mas ainda não possui efetivamente, capacidade de coibir.
Ela precisa alcançar a sustentação de sua aplicabilidade. Para ser pedagógica, como disse Beccaria, precisamos torná-la permanente, com capacidade de infra-estrutura de recursos materiais, humanos, com logística de alcance nacional. De nada adianta planejar ações de fiscalização descontinuadas, ocasionais, carentes de operacionalidade, isoladas, para serem utilizadas como disfarce para dar uma satisfação à sociedade que não mais se ilude com essas estratégias ultrapassadas de engodo.
A Lei Seca está umedecendo-se. Caso não alcance sua aplicação efetiva, capaz de tornar-se presente no cotidiano da comunidade do trânsito, ocupara um lugar secundário como tantas outras já ocupam e, será tão somente, assunto de mesa de bar.

Rodrigo disse...

Caro PC,

Entendo e até certo ponto compartilho de sua indignação. Porém, tentando ser objetivo, existe um caminho muito mais "fácil" para a punição de motoristas embrigados do que tentar fazer prevalecer o entendimento de que há dolo eventual nos homícidios no trânsito. Basta tipificar a própria conduta de dirigir alcoolizado, em qualquer nível, com pena elevada. O mesmo para dirigir em velocidade X% acima do permitido na via. Assim, não se falaria mais em dolo, pois se trataria de crimes de mera conduta. A pressão deve ser sobre o Legislativo. O Judiciário, bem ou mal, tem fortes fundamentos jurídicos a favor de sua posição contrária à tese de dolo eventual.

Paulo Cesar disse...

Caro Rodrigo,

Você tem razão. Por isso mesmo eu terminei meu desabafo fazendo uma sugestão aos legisladores.

Forte abraço,

PC