quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A cidade, os ciclistas e as ciclovias

O DF TV, da Rede Globo,  pôs no ar a matéria "Ciclista é flagrado é flagrado disputando espaço com os carros" no último dia 3 de agosto. Por absoluta coincidência, escrevi o texto abaixo a pedido do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba. O artigo foi publicado na edição do dia 4:


Ciclistas e ciclovias
Há poucos dias, participando de uma defesa de mestrado, ouvi de meu colega de banca uma informação intrigante sobre Curitiba. A cidade, uma das referências internacionais em termos de transporte público coletivo, está registrando altos índices de acidentes com ciclistas circulando nos corredores reservados aos ônibus. A explicação, conforme o relato, está em grande parte no fato de que as ciclovias da cidade são essencialmente de lazer, não contemplando as rotas de quem usa a bicicleta para as viagens a trabalho e estudo, por exemplo. Isso nos leva a perguntar: afinal, para quem se constroem ciclovias?
As ruas são os espaços das cidades destinados à circulação de pessoas, a pé ou embarcadas em veículos, e assumem características diferentes, conforme o modo usado para os deslocamentos. Na verdade, a rua, que comumente associamos ao espaço de circulação dos carros, só ficou assim muito recentemente. Há relatos da existência de ruas como lugares de encontros de pessoas para as mais diversas atividades desde o início da história da humanidade. Os automóveis, entretanto, com apenas um século de vida, apossaram-se delas de tal forma que não as chamamos mais de ruas se elas tiverem um uso diferente.
Por sua vez, é possível que as ciclovias tenham nascido dessa ideia de apropriação das ruas. Em tese apresentada à Universidade de Kassel em 1990, Burkhard Horn mostrou como a construção de ciclovias na Alemanha do período nazista estava associada ao programa de motorização em massa, que requeria a priorização do tráfego de automóveis nas vias. O estímulo à aquisição e ao uso de automóveis teria levado o regime a investir numa medida que tirava as bicicletas das ruas. Em outras palavras, a implantação de espaços exclusivos para a circulação de ciclistas significava também uma medida de caráter excludente, no que diz respeito ao uso dos espaços públicos.
Tenham ou não essa origem, as ciclovias não podem ser vistas como panaceia. Elas têm uma vocação e funcionam bem quando essa vocação é respeitada. Ciclovias são recomendadas essencialmente quando volumes e velocidades de bicicletas e veículos motorizados tornam o compartilhamento do espaço perigoso para os ciclistas. Ou seja, as ciclovias segregam espaços de circulação em benefício da segurança. Para velocidades e volumes moderados, o melhor é que bicicletas, automóveis e outros veículos convivam pacífica e harmonicamente. Ciclo fai xas são boas para compartilhar protegendo.
Por falar na circulação em espaços segregados, também é isso que ocorre quando são construídos corredores exclusivos de ônibus, como esses que os curitibanos bem conhecem. A diferença entre ciclovias e corredores de ônibus está no motivo da segregação: as primeiras existem para dar segurança, os últimos para dar prioridade. É para não submeter os passageiros de ônibus às retenções provocadas pelo excesso de automóveis que se implantam os corredores. É para não expor ciclistas aos riscos do tráfego motorizado que se implantam ciclovias.
Claro, as cidades devem ter lugar para esporte e lazer, portanto ciclovias de esporte e lazer devem ter lugar nas cidades. Mas, com elas, nossa cultura automobilística pode nos levar a reclamar da presença dos ciclistas nas ruas, como se o espaço deles fosse restrito a ciclovias, mesmo que não os levem de casa até a escola ou o trabalho.
Em suma, para ser democrático, o trânsito tem de ser inclusivo. Espaços exclusivos de circulação devem obedecer a critérios de segurança e prioridade para as pessoas, não para os veículos. E, acima de tudo, um trânsito é civilizado quando é educado e assegura uma boa convivência entre todos os cidadãos. Um exemplo disso são as bus lanes de Londres, criadas para a circulação de ônibus e bicicletas: funcionam muito bem e os motoristas e passageiros não se impacientam com a velocidade dos ciclistas. Vamos experimentar?
Paulo Cesar Marques da Silva, engenheiro mecânico, mestre em engenharia de transportes pela Coppe/UFRJ e doutor em estudos de transportes pela Universidade de Londres. É professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB)

4 comentários:

Unknown disse...

Excelente o artigo, Paulo!

O relato do que vem ocorrendo em Curitiba é válido também para o que ocorre diariamente na motofaixa da Av. Sumaré, em São Paulo. O problema é que a motofaixa nunca foi segura nem mesmo para os motociclistas e a velocidade regulamentada (mas não fiscalizada) é de 60 km/h...

O trânsito tem que ser inclusivo, mas isso é possível sem uma revisão radical das velocidades nas vias? Qual é a velocidade dos ônibus nas bus lanes londrinas? Em São Paulo, a velocidade máxima é de 50 km/h nos corredores de ônibus, muito embora, a velocidade operacional não chegue a 15 km/h na maior parte do dia.

Eu não vejo segurança para o ciclista em nenhuma situação hoje em São Paulo. Aqui partilhar não se faz convivendo - se faz às custas da vida do ciclista. Enquanto isso, assistem alheios os gestores do trânsito pensando: quem sabe depois de morrerem um monte, eles desistem?

Luis Patricio disse...

Realmente muito bom o artigo. Ele circulou bastante por aqui em Curitiba entre os grupo de mobilidade, no forum da bicicletada, no FoMuS e outros.

Aliás, eu já era assinante desse blog mas ainda não sabia que você era o mesmo Paulo Cesar que havia escrito para Gazeta.

Eventualmente vou a Brasilia, quem sabe numa dessas a gente poderia se encontrar para conversar.

Paulo Cesar disse...

Caro Luis Patricio,

Obrigado por seu comentário e pelas notícias. Será um prazer conversar com você em sua próxima vinda a Brasília.

Caro Eduardo,

As bus lanes londrinas têm o mesmo limite de velocidade das ruas urbanas: 30 mph, ou 48 km/h. O bonito é ver o motorista dirigir o ônibus na mesma velocidade e a uma distância segura do ciclista a sua frente, sabendo que ele logo fará uma parada pera embarque/desembarque de passageiros, durante a qual o ciclista se afastará o suficiente para talvez nem ser alcançado até a parada seguinte.

Abraços,

PC

RC disse...

É isso mesmo. Por isso não me empolgo com os projetos de XXX km de ciclovia no DF (aliás promessa nunca cumprida nem de longe). É preciso "ensinar" ao motorista que o ciclista faz parte do trânsito - e que, pelo bom senso e pela lei, deve ser protegido.