terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Frederico Holanda, sobre o Eixão

Artigo excelente, publicado na edição de hoje do Correio Braziliense:


O rei está nu!

Frederico de Holanda 
Arquiteto, professor aposentado da Universidade de Brasília

As mortes no Eixo Rodoviário de Brasília — a via expressa que atravessa a cidade de sul a norte — voltaram às manchetes, o que se repete a cada nova fatalidade. Reinstala-se o debate, fala-se na velocidade dos veículos, em imprudências de motoristas ou pedestres, na precária fiscalização. Alguns reconhecem problemas de urbanismo, mas as soluções aventadas são novas passarelas subterrâneas, melhorias das existentes, muretas de concreto na faixa central etc. São mais do mesmo, não contribuem para melhor qualidade de vida na cidade.

As sugestões são ruins porque pertencem à lógica da “capital rodoviária” (palavras de Lucio Costa): supunha-se que pedestres limitar-se-iam ao espaço interno das superquadras ou de outros setores urbanos. Fora daí, toda prioridade ao fluxo de veículos — idealmente sem cruzamentos. Mas nunca foi assim: para lazer, trabalho ou serviços muitos caminham entre quadras e setores, cruzam vias arteriais urbanas. O percurso mais controverso é o que atravessa o Eixão.

As reações contra mudanças no Eixão esgrimem a preservação dos atributos essenciais do projeto. Mas quais? Parecem ignorar que o projeto de Lucio Costa sofreu mudanças antes mesmo de começar a ser construído. Das mais importantes foi Brasília ter “engordado”: o caráter linear da cidade perdeu força ao acrescentarem-se novas fileiras de quadras paralelas ao Eixo Rodoviário — as 400, 600, 700 e 900 não existiam no projeto. A W3, importante via comercial, idem. As mudanças intensificaram os fluxos transversais de pedestres (na direção leste-oeste) e só agravaram o problema.

Contudo, soluções aventadas até agora não se libertam da lógica rodoviarista. Que tal revertê-la? O Eixão poderia ser uma bela avenida urbana, com sinais de trânsito a permitirem o cruzamento de pedestres na superfície. No lugar da atual faixa central, hoje não utilizada, um canteiro arborizado, gramado, florido, calçado com pedras portuguesas. O fluxo veicular teria velocidade baixada a razoáveis 60 km/hora. Tecnologias como ondas verdes, já implantadas com sucesso em outras avenidas da cidade, otimizariam o fluxo. Ele seria, sim, reduzido, pois os veículos não mais seriam donos exclusivos do pedaço, como reza a cartilha rodoviarista. (À guisa de exercício, contrastem isso com a pavorosa mureta de concreto aventada, a dividir ao meio o espaço lindamente povoado pelos pedestres aos domingos!)

Sim, teríamos um novo atributo urbano, todavia não contraditório com o estatuto do tombamento: sua essência não é o rodoviarismo da cidade, são suas escalas: a gíria local para os quatro tipos essenciais de configuração que organizam a paisagem urbana — monumental, gregária, residencial, bucólica. Em nada o novo Eixo, arborizado e semaforizado, teria reduzida sua força como macroelemento estruturador da imagem urbana. Pelo contrário, sua amigabilidade para com os pedestres fá-lo-ia mais memorável, até mais compatível com a escala residencial em que está inserido. Não sejamos, pois, sectários. Preservar a forte identidade da cidade, suas qualidades essenciais justamente reconhecidas internacionalmente, sim, é fundamental. Não seus problemas, principalmente quando eles envolvem a morte de pessoas.

Não estou sendo original. Nos anos 1990, o Instituto de Arquitetos do Brasil (Departamento do Distrito Federal) realizou concurso de ideias sobre o Eixão, aberto a toda a população. Analogamente à historinha do rei nu, a proposta vencedora foi de adolescentes, que propuseram modificações similares às sugeridas aqui. A solução apontada é a mais óbvia e natural, uma vez revertida a lógica rodoviarista — o que aliás está acontecendo no resto do mundo onde um dia ela prevaleceu, inclusive em cidades brasileiras como Rio e São Paulo. Nova prioridade é concedida a pedestres e ao transporte público. Os adolescentes tinham razão. E nós? Vamos continuar fingindo enxergar as belas vestimentas do rei?

5 comentários:

Ângela Bertazzo disse...

Finalmente alguém com coragem...

Fernando Chapadeiro disse...

Excelente.

Flavio Dias disse...

Semáforos não são sinônimos de segurança e nem de mobilidade. Insisto em instalar PASSAGENS EM NÍVEL para os pedestres. Os veículos devem arrodear, seja por cima (com passagens semi-enterradas e sem escadas, etc. para o pedestre) ou por baixo, num mergulhão.

Luis Peters disse...

O problema com as pedras portuguesas (petit pave) é que não sabemos lidar bem com elas aqui no Brasil ... desprendem-se facilmente e atrapalham quem caminha.
O "canteiro arborizado, gramado, florido, calçado" para o eixão seria bom também para o eixo Monumental (pelo menos a partir do Memorial JK, mesmo que com descontinuidades).

Anônimo disse...

Creio que os semáforos são mais viáveis. Para fazer passagens de nível decentes, dignas de pessoas cidadãs, parece que seria algo bem custoso. O ideal seria enterrar o tráfego de automóveis, não parece muito factível. Enterrar as passagens, levando os pedestres para o escuro, o subterrâneo, o indigno, o Hades, seria oferecer mais do mesmo que já existe e humilha o desmotorizado. Elevar, sem condições de equidade (motorização para as elevações de pessoas) poderia se tornar um desperdício.