No último dia 7 de abril, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.650/03 [arquivo em PDF], que trata da proibição da circulação de motocicletas entre as filas de veículos, o chamado “corredor”.
As reações de oposição ao Projeto de Lei foram imediatas. Em menos de 15 dias, o assunto foi tragado pelo ralo usual dos recursos regimentais, interpostos pelos Deputados Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), Jair Bolsonaro (PP-RJ), William Woo (PSDB-SP) e Ciro Nogueira (PP-PI) [arquivos em PDF], em mais uma demonstração da alta sensibilidade do Congresso Nacional a qualquer assunto que diga respeito à nossa vida no trânsito.
O assunto vai agora a votação em Plenário, sabe-se lá quando, porque afeta “sobremaneira odireito dos usuários de transporte ciclomotores e afins trafegarem pelos grandes centros urbanos”, furtando da motocicleta “sua maior característica, qual seja a agilidade do deslocamento”, de acordo com os nobres parlamentares.
A bancada do “corredor” ecoa, portanto, a mesma poeira de idéias defendidas em artigo do presidente da Associação Brasileira de Motociclistas (ABRAM), publicado pela Folha de São Paulo no último dia 25 de abril.
Já que tudo será decidido em Plenário, como manda o figurino democrático, vale a pena questionar o que está em jogo.
56. O artigo natimorto
O projeto de lei em discussão reintroduz uma disposição vetada (o antigo artigo 56) do Código de Trânsito em 1998 que tratava todos os veículos… como veículos, submetendo-os, portanto, às mesmas regras de circulação.
Para o Código, automóveis, motocicletas, caminhões ou ônibus são a mesma coisa: VEÍCULOS AUTOMOTORES. Veículos automotores, por sua vez, transitam em FAIXAS DE TRÂNSITO, ou seja, em uma das áreas longitudinais em que uma pista de rolamento pode ser subdividida. As faixas geralmente são sinalizadas por marcas viárias, que separam e ordenam a circulação e estabelecem as regras de ultrapassagem. Não está prevista outra possibilidade para o posicionamento na via: TODOS os veículos automotores devem ocupar o espaço delimitado para a faixa de trânsito, formando, portanto, uma fila. E, como toda fila, essa tem também sua regra. Os veículos deve transitar na faixa de trânsito mantendo DISTÂNCIA DE SEGURANÇA lateral e frontal em relação aos demais veículos, bem como ao bordo da pista.
Quando vemos do alto uma avenida completamente congestionada, temos a imagem perfeita das filas compactas de veículos em cada uma das faixas e é impossível não perceber que entre as filas forma-se um… “corredor”. No meio do caos da grande cidade esqueceram um pedaço livre de asfalto? Não, não esqueceram: emparedado pelas filas, o “corredor” é a soma das distâncias laterais de segurança dos veículos em suas respectivas faixas. O espaço está livre, mas tem “dono”.
Como era e continua sendo impossível que um automóvel, ou caminhão ou ônibus ocupe esse “corredor”, pelo simples fato de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, jamais foi necessário estabelecer uma regra para isso. O natimorto artigo 56 estabelecia simplesmente a ISONOMIA da regra para todos os veículos – vetando, portanto, à motocicleta a ocupação do “corredor”, a circulação irregular sobre a sinalização horizontal e, sobretudo, o esgotamento da distância de segurança dos demais usuários do sistema viário.
A ideologia da agilidade: vantagens privadas x interesse público
O veto ao artigo 56 não autorizava a ocupação do “corredor”, mas foi exatamente isso que ocorreu porque o ato da Presidência da República (sim, o artigo foi vetado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso) consagrava o conceito da indústria de motocicletas, agora repetido por seus lobistas, de que a motocicleta não é um veículo como os demais.
Os porta-vozes da indústria defendem em uníssono que, por uma característica intrínseca, genética, histórica, a razão de ser da motocicleta é a AGILIDADE, é sua não-submissão ao fluxo do trânsito, é sua liberdade de escapar da condição de veículo automotor. Ora, carro é carro; moto é moto!!
O marketing vitorioso da indústria de motocicletas depende visceralmente dessa idéia de agilidade: o que se vende não é apenas a independência da locomoção sobre duas rodas, mas a libertação estritamente individual dos congestionamentos e da lentidão que imobilizam a grande cidade.
Como isso é possível? Ocupando-se o último espaço desse sistema viário cada vez mais saturado – o “corredor”, aquele naco de asfalto “dando sopa”. Os motociclistas tornaram o “corredor” disponível para si às custas da segurança de todos os demais usuários. O “corredor” é o roubo da segurança coletiva para usufruto exclusivo dos motociclistas.
Esse papo da agilidade da moto é uma farsa que esconde a defesa do privilégio de se colocar à margem das regras estabelecidas pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O privilégio é ser um NÃO-VEÍCULO. Sem essa de faixa de trânsito, de sinalizações pintadas no chão, de regras de ultrapassagem, de distância de segurança – o “corredor” inaugurou o direito das duas rodas, o CTB do B.
O “corredor”
Por omissão, por conveniência política, ou por absoluta incapacidade de fiscalização, nenhum órgão gestor de trânsito no país confrontou a tomada do “corredor” pelos motociclistas. Perdidos em discussões profundas sobre se o “corredor” era uma ultrapassagem ou não, ou sobre quantos centímetros definiriam, afinal, a tal distância de segurança, a autoridade pública e seus intelectuais fingiram-se de mortos e tomaram de barato que a vida era assim mesmo, um destino sobre duas rodas, fazer-o-quê?
Na última década ficou claro que o Poder Público não tinha poder, muito menos caráter público, e contribuiu decisivamente para converter o veto do artigo 56 em uma autorização de fato para as motocicletas circularem entre carros. O resultado concreto qualquer um assiste na TV.
Olhando bem do alto, parece mais uma daquelas incríveis invenções brasileiras, em que tudo se ajeita – uma fila de carros aqui, outra ali, um cordão de motos no meio. Houve espelhos retrovisores arrancados, chutes na porta, alguma gritaria e uns sustos, mas olhe lá embaixo: estão todos convivendo, partilhando o espaço exíguo, cada um da sua maneira. Ô povo criativo!
Do alto, tudo é lindo, até mesmo plantações de soja, cana e algodão comendo a selva amazônica. De perto, bem ao nível da rua, a história é outra. Nas principais vias de São Paulo, mais de 70%de todos os acidentes registrados envolvem motocicletas. Em que posição na via elas estavam? Quase 40% de todos os atendimentos do Corpo de Bombeiros ou da SAMU são acionados para resgatar vítimas de acidentes envolvendo motocicletas. Onde eles encontram o motociclista?
Se o Presidente da ABRAM pudesse articular informações para além do mundinho limitado de sua experiência individual sobre duas rodas, ele também veria que a violência do trânsito paulistano é INDISSOCIÁVEL do modo de condução da motocicleta no “corredor”. Ao invés de afirmar que o “corredor” é seguro porque “nunca presenciei um acidente de moto no corredor”, ele deveria questionar as circunstâncias em que ocorrem os acidentes e as mortes de motociclistas atualmente em São Paulo.
É muito estranho que alguém que ande tanto por aí nunca tenha visto um motociclista indo ao chão no “corredor” e terminar esmagado pelas rodas de um caminhão nas marginais em São Paulo, ou em qualquer outro lugar da cidade, tanto faz: em São Paulo, de cada 10 acidentes de trânsito que geraram vítimas, 6 envolveram motocicletas, em 2008. E isso nos leva à pergunta que realmente importa: quem são essas vítimas?
Segurança é vontade política
O que estamos discutindo verdadeiramente quando cogitamos proibir a circulação da motocicleta no “corredor” não é a segurança do motociclista. Não há dúvida de que ele é a principal vítima da própria conduta, mas ele é apenas uma das vítimas.
Em nome da lógica individual da agilidade, a tomada do “corredor” pelos motociclistas subtraiu dos demais condutores e dos pedestres a segurança de circulação na cidade. Foi no impacto com a motocicleta que 35% dos ocupantes de veículos, supostamente muito protegidos pela carroceria de aço, perderam a vida em 2008 na cidade de São Paulo. A situação dos vulneráveis pedestres, é claro, não poderia ser melhor: quase 25% dos pedestres morreram em acidentes envolvendo motocicletas.
A defesa corporativista do “corredor”, no entanto, ignora essa realidade e diz que o problema são os outros: é o motorista que não respeita nada, é o pedestre desorientado, o folgado do ciclista. O motociclista não passa de uma grande vítima da irresponsabilidade dos outros!
A distorção interessada das coisas é o ofício de todo bom lobista e o argumento final dessa armadilha é a retória do “extremo perigo” de obrigar a motocicleta a tomar sua posição na via, atrás dos carros. Não é incrível que ficar atrás de um carro seja tão “extremamente perigoso” no Brasil, enquanto é a regra de circulação em todo o resto do mundo? Como é que outras sociedades conseguem fazer essa “mágica” de colocar as motocicletas atrás dos veículos e garantir aos motociclistas campo de visão e espaço para frenagem sem matarem todos eles?
O que nem o Presidente da ABRAM nem os representantes da bancada do “corredor” querem perceber é que o mundo não gira em torno da segurança do motociclista. Em cima de duas rodas há uma vida; fora delas, há muitas mais.
O Plenário da Câmara dos Deputados pode decidir, no entanto, que os interesses particulares dos motociclistas sobrepõem-se à preservação da segurança coletiva no trânsito. Na oportunidade, quem sabe, poderemos finalmente descobrir se a motocicleta é ou não é um veículo.
Qual é sua opinião? Devemos criar um código especial de regras de circulação e conduta para a motocicleta ou obrigá-la a ocupar a mesma posição dos demais veículos na via? Devemos referendar o “corredor”, em favor dos interesses particulares dos motociclistas, ou legislar pela segurança coletiva de todos os demais usuários, motoristas e pedestres?
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