terça-feira, 26 de maio de 2009

Uma questão de cidadania

(Este artigo foi publicado originalmente na edição de hoje do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba)

Ao contrário da liberdade de ir e vir, a possibilidade de dirigir não é um direito natural assegurado por dispositivo constitucional. Para conduzir veículos, é preciso ser portador de documento válido de habilitação. No Brasil, a carteira de habilitação é uma licença concedida pelo Estado, de natureza temporária e revogável, que o cidadão só pode obter, e depois manter, sob determinadas condições.

O direito que a licença dá também só pode ser exercido se alguns requisitos forem cumpridos. Por exemplo, o uso de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que cause dependência – incluindo medicamentos – é incompatível com com a atividade de conduzir veículos. O Código de Trânsito Brasileiro, com a redação dada no ano passado pela Lei nº 11.705, proíbe qualquer concentração álcool no sangue, e os efeitos desse novo dispositivo têm sido inegavelmente notáveis nos índices de segurança.

Outro dos requisitos a serem cumpridos é que o condutor não tenha atingido 20 pontos (equivalentes a quatro infrações graves) no espaço de 12 meses anteriores. Tanto no caso da alcoolemia como no da pontuação, há uma forte dependência da fiscalização. Mas também é razoável esperar-se que prevaleça a atitude cidadã de condutores, abstendo-se de descumprir a legislação – tanto mais quando o condutor em questão é um homem público.

A se confirmarem as informações divulgadas na imprensa desde o início do mês, a ocorrência protagonizada pelo deputado estadual Luiz Fernando Ribas Carli Filho é revoltante em diversos aspectos, agravada pela circunstância de se tratar de um legislador. Se nos ativermos apenas aos acontecimentos daquela noite, encontraremos um indivíduo alcoolizado, com a habilitação suspensa, conduzindo um veículo a 190 km/h quando atinge outro, matando seus dois ocupantes. Imagens do veículo atingido divulgadas na imprensa são chocantes.

Não pretendo, porém, fazer um julgamento do deputado. Prefiro comentar um conjunto de possíveis lacunas ainda permitidas, quer pela legislação, quer pelas interpretações de membros do Poder Judiciário ou ainda pela atuação dos órgãos de trânsito.

O problema do excesso de velocidade, por exemplo, é um dos que, claramente, conta com atitudes indulgentes de diversas esferas do poder público para não ser atacado como merece. Um passo importante no sentido de reverter esta tendência foi dado em novembro de 2007, quando o Superior Tribunal de Justiça confirmou o indiciamento por homicídio qualificado de Rodolpho Félix Grande Ladeira, acusado de provocar a morte de Francisco Augusto Nora Teixeira em Brasília, quando colidiu com seu veículo a mais de 160 km/h. O STJ entendeu que, ao trafegar com velocidade tão superior ao limite da via, Rodolpho ofereceu perigo deliberadamente. Ora, se provocar morte nessas circunstâncias é homicídio doloso, trafegar a tão alta velocidade não seria uma tentativa de homicídio? Não poderia o infrator ser rigorosamente condenado por isso, antes de causar vítimas?

No caso de suspensão ou cassação da habilitação, será que o Estado age efetivamente para impedir que o condutor saia às ruas dirigindo? Se não estou enganado, as autoridades de fiscalização do trânsito limitam suas ações essencialmente às blitze – que, obviamente, não podem deixar de ocorrer. Mas não haveria meio mais eficaz de proteger a população de condutores perigosos? Sim, porque é disso que se trata. Antes que alguém venha arguir que defendo um Estado policial, devo dizer que o assunto é de ações preventivas de segurança pública, e o interesse público precisa estar acima da preservação irrestrita da privacidade dos infratores.

Reconheço que estas não são mais que reflexões, com poucas chances de virem a se materializar em alterações normativas. Mas, voltando às lacunas a que me referi algumas linhas atrás, talvez as mudanças de que mais precisamos sejam mesmo de ordem cultural mais do que de natureza legal.


Paulo Cesar Marques da Silva é engenheiro mecânico pela UFBA, mestre em engenharia de transportes pela Coppe/UFRJ e doutor em estudos de transportes pela Universidade de Londres (University College London). É professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB).


Um comentário:

Henrique disse...

Paulo, você tem toda razão: a sociedade tende a ser muito mais complacente com o abuso da velocidade do que com o do álcool. Um dos motivos é porque (relativamente) poucos bebem antes de dirigir, mas muitos abusam da velocidade - e acham isso "normal". Outro aspecto que ninguém mencionou com relação a esse fato em Curitiba: por que cargas d'água se permite a fabricação de carros DE PASSEIO que correm a 200 km/h quando a velocidade máxima na maioria dos países é de 130 ? Por que se constroem no mundo inteiro carros que só poderiam rodar nas auto-estradas alemãs, onde não há limite de velocidade? Acho que se a gente começar a fazer esses questionamentos, o debate vai ser muito mais proveitoso.